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(Æåñòîêàÿ ñêàçêà N4. Ïåðåâåäè ìåíÿ ÷åðåç ìàéäàí) -- PORTUGUESE -- (Tradução por Eugeni Dodonov) Comentário de J. Lockhard Esta hist?ria come÷a onde normalmente as hist?rias sobre catñstrofes terminam. Realmente, uma catñstrofe terrývel, que destruiu toda a vida; a Onda, jñ atravessou a galòxia, transformando planetas em peda÷os de rochas mortas. Apenas as espùcies mais primitivas e limitadas sobrevivera - bactúrias, plantas... e humanos. Este ù o conto mais escuro e cruel de Pavel Shumil. J. Lockhard -------------- Até agora nunca encontrei uma história tão cruel quanto "Me ajuda a atravessar Maidan". Mais do que isso, nunca imaginei que algum livro seria cruel demais para mim, mas... Pelo menos, não me arrisco a lê-lo novamente. Talvez, quando estiver com alma pesada, vou decidir que o mal se cura com mal e vou ler a história novamente. Leitor Maxim Krupnov |
Me ajuda a atravessar Maidan (*) Pavel Shumil (Tradução por Eugeni Dodonov) (Edição final: Camilla Martins) Não acredite na tempestade Quando chuvas intermináveis estão caindo. Não acredite na infantaria Quando ela canta canções alegres. Não acredite, não acredite, Quando pássaros começarem a cantar nos jardins; A vida e a morte Ainda têm contas a acertar. Bulat Okudjava Pacote informativo 1 O que a humanidade deve fazer se acontecer uma catástrofe na Galáxia? Uma catástrofe de proporções inimagináveis, maior do que tudo que já tenha acontecido? Se das profundezas do espaço vem chagando a Onda, que altera todas as leis físicas. Se é inútil pensar em alguma defesa e é possível apenas fugir. Fugir, como baratas, para todos os lados, nos escondermos nos buracos da parede - e fugir de novo, sentido o perigo novamente. O pior de tudo é que o campo gravitacional das estrelas trincava, rompia, enrolava o frente da Onda. No lugar de uma Onda milhares de Ondas corriam a Galáxia. Elas se cruzavam, se debatiam, se enfraqueciam e reforçavam umas às outras. Prever alguma coisa tornou-se impossível. Mas isso foi a salvação também. Porque não existia mais uma Onda sólida e impenetrável. Como sua ação se difundiu pelo espaço e tempo, muitas estrelas conseguiram uma chance de sobrevivência. Nós brincávamos de esconde-esconde com o destino. Nós pulávamos pela Galáxia como pulgas. O motivo era simples - não fique parado. Se ficar parado, mais cedo ou mais tarde a Onda irá te alcançar. Pule. Mas não erre. Não alcance a Onda por si mesmo. Jogo de roleta russa. Nós tocávamos pacotes informativos. Onde, quando e quem detectou a Onda e com qual intensidade. No começo a nave recebia milhares de pacotes. Agora - dezenas. Nossa tripulação alcançou a Onda duas vezes. ------------------------------ Eu estava parado, escutando. Me ajuda a atravessar Maidan A multidão de pessoas conhecidas Lá, onde as abelhas estão se sentido em paz Me ajuda a atravessar Maidan Bonus estava se despedindo da nave e da Nadezhda (**). Vulcãozinho amava esta canção. Eu queria ajudar a cantar, mas me segurei. Nem voz, nem audição eu tive. Nos ensaios do coral Nadia me deixou o lugar honorário de espectador. Tentando não fazer barulho, eu saí do setor. Com olhar de visitante olhei pelo corredor. A nave era velha. Muito velha. Cinco anos biológicos e cinco séculos de anabiose a gente passou nestas paredes. Era necessário apenas fechar os olhos e a memória maldita me fez voltar naquela noite. Aquele quando nós quatro nos tornamos a tripulação... - Quem é? - perguntou Luisa - Você a conhece? - Nadezhda Kavun. Também conhecida como Vulcãozinho. Me ajuda a atravessar Maidan Todos estão na guerra Não percebem nem eu nem você Me ajuda a atravessar Maidan Com tristeza inacreditável estava cantando Vulcãozinho, sentada na janela da barraca e tocando de leve o violão. Luisa segurou minha mão até doer e arrastou até a janela vizinha. Percebendo a gente, Vulcãozinho continuou a cantar: Me ajuda a atravessar Maidan Ele respira com batalhas, lágrimas e rizadas As vezes ele não se escuta Me ajuda a atravessar Maidan Me ajuda a atravessar Maidan Onde todas as canções já foram escutadas e cantadas Eu entrarei no silêncio e desaparerei - como se não existisse Me ajuda a atravessar Maidan Bonus sentou na janela do nosso lado. - O que é Maidan? - perguntou ele. - Cada geração tem a sua Onda. Maidan - é a onda dos nossos predecessores. Mas a palavra maidan significa campo, praça. - Vamos pegá-la na tripulação! - suspirou quentemente Luisa. - Mas ela não vai sem o Bonus. - Então, pegamos junto com o Bonus. - Mas... - Não tem "mas"! Me responde, quem é o melhor capitão? Está vendo, ficou chateado. Bonus, entre nós, é o melhor piloto na atmosfera de toda a faculdade. Me ajuda a atravessar Maidan Com meu amor, com dor de veneno Aqui estão meu dias de insignificância e glória Me ajuda a atravessar Maidan - Você está falando sério? - Bobinho. Você está pensando que é só você quem está escolhendo a tripulação? Já faz dois semestres que eu entrei no computador central e copiei os dados de todos. - Você que é bobinha. Se te pegassem, você sairia jogada daqui como um passarinho. - Mas me pegaram mesmo - sorriu Luisa. - A secretária voltou na hora errada e começou a gritaria. - E não te expulsaram? - Eu disse a verdade. Que estava procurando companheiros para o vôo. Me deram uma lição de moral e me soltaram.. Na cozinha, para limpar as batatas. Até hoje consigo limpá-la até com olhos fechados. - Eu gosto de batata! - Quem gosta de sopa de batata? - exclamou Vulcãozinho, deixando o violão de lado. - Está vendo só? Já temos interesses comuns! Nadia, o Capitão adora limpar batatas. E eu gosto de comê-las. Bonus, o que você acha de batata? - Eu gosto de batata frita. - Beem... Batata frita não é batata de verdade! Quer experimentar batata de verdade? Luisa está oferecendo. - Festa? Eu sou a favor! - prontamente respondeu Bonus. - Vulcãozinho, e você? - Vou bater a sua cabeça na parede - suspirou no meu ouvido Luisa.- Você mesmo vai limpar a batata! - Cap, não está justo isso! Quem contrata tripulação no meio do corredor? Piratas não fazem assim! Piratas contratam a tripulação na taverna com uma caneca de Rum! A gente era tão jovem, esperávamos tanto da vida. Luisa, Estrelinha minha... - Adeus, meninas - disse eu em voz alta. Bonus já se escondeu na câmara de entrada do shuttle. Eu atravessei a borda e fechei a entrada. - Pronto! A pressão alterada entupiu os ouvidos. Bonus estava verificando a hermeticidade da cabine. Ele já estava sentado na poltrona esquerda. Eu sentei na direita, coloquei o cinto com gesto decorado na memória. Na poltrona normalmente sentava-se a Estrelinha. Vulcãozinho sentava-se na poltrona do meio da segunda fileira. - Faremos a "oração"? - Para os demônios. Fizemos todos os testes há uma hora. Pela oração por algum motivo desconhecido era conhecido o procedimento de verificação de todos os sistemas da nave antes da partida. - Good - respondeu Bonus e começou a clicar nos triggers, ativando os sistemas do shuttle. Eu do meu console me comuniquei com o ciber-cérebro da nave e iniciei o procedimento de fechamento dela. - Lá fora é vácuo... Abertura começada... Saída aberta... - eu estava narrando os resultados dos comandos. - Cabo de suporte desconectado.. Suporte desconectado.. Estamos prontos para a separação. - Let me free - afirmou Bonus, tirou a proteção do gatilho e suavemente apertou o botão. Cabos hidráulicos dos impulsores suavemente enviaram a nave para a escuridão do espaço. - Abertura começada... Saída fechada - como de costume, eu estava comentando os resultados dos comandos. - Estou vendo - respondeu Bonus. Eu tirei os olhos do monitor e olhei através do vidro da frente. A superfície da nave brilhava com uma luz verde fraca, o sol se refletia no alumínio anodizado. Na última saída ela parecia apenas cinza. A proteção de chumbo de três camadas tinha sido jogada fora ontem, para que a nave pudesse aterrissar num planeta com atmosfera. Bonus mexeu no manche. Motores de rotação bateram por um momento, e a nave saiu de vista. - Tudo em ordem. O ciber-cérebro me disse que a nave passa para o estado de conservação. - Good - respondeu Bonus, e a aceleração nos empurrou nas poltronas suavemente. Apertando um par de botões no teclado do suporte da mão esquerda, eu coloquei no vidro dianteiro na minha frente os parâmetros da órbita. A altura do perigeu diminuía extremamente rápido. Quando ocorreu a separação dos motores, ela era de apenas 0,6 megametros. Eu olhei para os números do período da órbita, tirei os cintos de segurança e, me prendendo pela sola magnetizada dos sapatos no chão, fui para o salão. Bonus apertou o trigger do auto-piloto e saiu atrás de mim. - Um bom planeta. No sentido de bem conservado - disse ele. - Cemitério. - Porque cemitério? A Terra é um cemitério. Este planeta é verde. - Acho que agora a Terra é verde, também. Quantos anos já se passaram... Quer café? - Antes de dormir? - Como quiser. Tomei um saco hermético com café com leite, desgrudei o banco da parede, tirei os sapatos e mergulhei para baixa de rede protetora. - Odeio dormir com gravidade nula. - Então me acorda uma hora antes do perigeu. Acordei devido à aceleração, que quase me jogou para fora do banco. A rede me segurou. Entretanto, a aceleração não foi muito grande, no máximo um quarto de "g". Eu esperei a manobra terminar, tirei a rede, coloquei os pés nos sapatos magnéticos e me arrastei até a cabine. - Onde estamos? - Na circular. Seiscentos quilômetros, período de noventa e seis e quatro décimos de minuto. Eu sentei na minha poltrona e verifiquei os dados que chegaram da nave. - Conservação terminada. - Você acredita que daqui a uma hora pisaremos em terra com os nossos pés? - E para onde podemos ir, droga? - Daqui a oito minutos teremos a terceira manobra. - Já almoçou? - Não. - Dá tempo. Eu trago para você. Depois de uns dois minutos eu voltei no salão flutuando uma mochila cheia de embalagens com comida, como uma bexiga de criança. Sentei no meu assento, joguei a mochila embaixo do assento vizinho. Bonus, sem tirar os olhos da tela do piloto automático, tirou um biscoito e um tubo com algum suco. Colocou no ar na frente dele. A mão esquerda dele voava sem parar sobre a planilha das coordenadas. Na tela aparecia e desapareciam colunas de números. Com a mão direita ele colocava na boca ora o biscoito ora o suco, deixando o segundo objeto flutuando no ar. Eu escolhi um tubo com leite e um pedaço de pão preto. Durante um minuto fiquei olhando com canto de olho para a tela do Bonus, depois dupliquei a imagem na minha. Bonus estava estimando como aterrissar o shuttle na praia a cinco mil quilômetros de distância do plano da órbita atual. - Não vai dar certo. - Vai dar sim - disse Bonus tristemente e respirou fundo. - Agüentará oito "g"s? - Manobra na atmosfera? O shuttle agüentará? - Você se preocupa com isso? - Não - eu assumi. Bonus terminou de comer o biscoito, colocou o tubo vazio embaixo da rede de "porta-luvas" à esquerda dele e segurou o manche. Eu arrumei os cintos e coloquei a mochila sobre os meus joelhos para que ela não voasse na cabine durante as manobras. Os motores de orientação berraram duas vezes. O meu corpo se mexeu para a esquerda e para cima. Eu segurei a mochila na barriga, terminei de tomar o leite rapidamente e coloquei o tubo vazio na mochila. Motores berraram de novo, e o motor principal entrou em ação no mesmo instante. Desta vez Bonus deixou as delicadezas de lado. No mínimo quatro "g"s. E logo em seguida, sem esperar jogar para fora o motor principal, nova manobra. O shuttle entrava na atmosfera agora, colocando o seu nariz um pouco para cima em relação ao vetor de velocidade e inclinado um pouco para lado esquerdo. Bonus pilotava como um mestre. - Sobre a água? - Sim. A laguna parece ser bonita. Nos planetas desconhecidos os instrutores recomendavam a aterrissagem sobre água. De preferência água do mar. É mais seguro e leve. O mar não pode virar areia, pântano ou terra molhada de repente. Mar é mar. Na falta do que fazer eu verifiquei os dados recebidos da nave. Lá em cima tudo estava em ordem. Mal tinha terminado quando o shuttle sentiu a atmosfera. A aceleração nos empurrou no banco suavemente. Eu tomei uma pose melhor e relaxei. Nos treinos de avião estas acelerações duram segundos. Nas naves espaciais dezenas e centenas de segundos. Fora isso, não tem diferença. - Segura o manche - pediu Bonus. Eu abri os olhos, coloquei as mão que ficaram pesadas de repente sobre o manche, bati o olho nos aparelhos. Olho acostumado a esta tarefa pegava blocos de informações: velocidade - densidade da atmosfera, velocidade vertical - altura, rota prevista - rota atual. Embaixo - um oceano infinito. - Começando a manobra - informou Bonus. Máquina caiu para um lado levemente, e a aceleração levemente da mesma forma subiu de quatro para oito "g"s. - Aqui não tem inverno - disse Bonus quando a aceleração caiu para um. - Inclinação do eixo de quatro graus. - Nuvens - lamentei. Máquina caiu numa parede de nuvens sólida, sem nenhuma brecha. Na tela do radar a linha costeira aparecia nitidamente. Saímos das nuvens na altura de dois mil e meio. Já dava para ver a praia. Traços de ondas estavam parados sobre água infinita, cor de chumbo, embaixo. A máquina balançava nas correntezas do ar. - Onde está a sua laguna? - Bem na frente. Aterrissaremos do lado do mar. Hoje vamos jantar ao lado de uma fogueira. O que você acha, peixes sobreviveram por aqui? - Eu não acho nada. De repente a poltrona da segunda fileira bem atrás de mim virou bruscamente. Com barulho de doer nos ouvidos explodiram suportes pirotécnicos, jogando para fora o teto da cabine sobre nós. V-v-uuh! - motores de pólvora funcionaram, catapultando a cabine para fora. Vento começou a entrar na cabine, fazendo barulho e batendo na cara. Trrah, vvvuh! - segunda poltrona da segunda fileira catapultou atrás da primeira. - Que raios! - gritou Bonus. - Não fui eu - gritei eu de volta, - sozinha! P-puta! Bonus começou a apertar os triggers, desligando piloto automático e o computador central, para desativar o programa de catapultagem dos pilotos. Vvvuh - saiu voando terceira poltrona da segunda fileira. Eu soltei o manche, joguei mochila para fora, me agrupei. A próxima poltrona a ser ejetada era para ser a minha. Virada brusca, barulho rasgado em cima da cabeça, aceleração que quase fez o estômago explodir - e estou lá fora, e o shuttle está caindo para baixo extremamente rápido. A tampa do quinto assento estava caindo como uma folha branca embaixo de mim, e logo em seguida o assento saiu voando da cabine numa nuvem de gases de pólvora. Puxou, abrindo, pára-quedas. Eu claramente vi como sobre a última, sexta tampa saíram duas nuvens de fumaça. Duas de três! Mas a tampa não saiu para fora, não começou a caiu numa correnteza aérea. E no momento seguinte ela foi jogada para fora com o impacto causado pelo assento do Bonus. Eu apertei o botão no cinto, os cintos se soltaram, e a poltrona pesada voou para as águas cinzas do oceano. Em cima do assento vazio abriu a cúpula do pára-quedas, e dois segundos depois o pára-quedas se abriu sobre o assento do Bonus. O shuttle caiu para um lado, virou completamente bem devagar e mergulhou na água. Explosão enorme de água e fumaça voou para cima. Alguns segundos depois ele saiu para fora da água devagar e virado ao contrário, mas logo em seguida abaixou o nariz e afundou. Explosão não aconteceu. Se o spin-gerador explodir quando eu entrar na água sobrará apenas um saco de ossos de mim. Estou contando os segundos. Parece que dei sorte. Sorte? Ou o contrário? Bonus acabou não soltando o assento, por isso ele estava caindo muito mais rápido do que eu. O sistema automático de ejeção funcionou de repente. Funcionou sozinho, sem nenhuma ordem. E o piloto automático foi desligado pelo Bonus, na tentativa de desligar o sistema de resgate automático. E, como resultado, nós perdemos o shuttle, comunicação com a nave, ferramentas e comida... Nós ficamos preparando o shuttle para a aterrissagem por tempo demais. Mas existem coisas que não podem ser verificadas. É possível verificar uma caixa com fósforos? "Sim, mas uma vez só" - diria Vulcãozinho. Segurando as cordas, eu direcionei o pára-quedas para o lugar onde aterrissou o piloto. A água queimou de tão fria. Não tinha por que ter medo de tubarões. Nem pingüins sobrevivem aqui! - xinguei eu em voz baixa. Tirei o suporte do pára-quedas, em algumas braçadas alcancei o assento do Bonus, tirei o tecido molhado do pára-quedas do rosto do amigo.. Bonus estava inconsciente. Uma ferida pequena na testa jorrava sangue. Eu tirei as botas magnéticas pesadas, as deixei caírem para a profundidade, tirei as botas do Bonus, o tirei do assento, segurei pela gola e, dando braçadas com uma mão só, comecei a nadar para a praia distante. Nadar na água gelada duas dezenas de quilômetros, ainda por cima carregando um amigo ferido, é inviável. Mas as equipes dos Esquadrões da Vida foram treinadas para sobreviver em qualquer circunstância. Pacote informativo 3 ...O que é a Onda? Durante anos as melhores mentes da Humanidade ficaram pensando sobre isso. E o resultado? Confirmação da tese "Eu sei que nada sei". Quantidade enorme de material observado - e nenhuma teoria que pudesse explicar pelo menos metade dele. A frente da Onda anda com velocidade que ultrapassa a velocidade da luz. Na zona de ação da Onda as constantes universais "fluem". Leis físicas, que pareciam eternas, acabam sendo quebradas. Massa gravitacional acaba sendo diferente da inercial, leis fundamentais de conservação de energia dizem um "Tchau" aos físicos e saem de férias. Terceira lei da termodinâmica? Meu caro, do que você está falando? Esquece! Durante muito tempo existia uma teoria na qual a Onda foi descrita como a alteração do fluxo do tempo num nível microscópico. Desta forma, o tempo no nível macroscópico flui para um lado e, no nível das partículas elementares - para o lado contrário. Não deu certo. Depois chegou algum outro e disse: "A Onda é uma região do espaço com velocidade dos processos entrópicos alterada. Inclusive para valores negativos". E todos concordaram com ele. Esta definição pode servir de rótulo, mas não explica nada. Por que algumas estrelas, sofrendo a ação da Onda explodem, e outras em poucas horas se tornam globos de elementos pesados com temperatura próxima ao zero absoluto? Por que a frente da Onda se movimenta com velocidade maior que a velocidade da luz? Porque a Onda ignora todos os campos físicos com exceção do campo gravitacional? O que ou quem criou a Onda? Com certeza sabe-se apenas o seguinte: A Onda faz milagres. Milagres malvados. ------------------------------ Bonus morreu sem recuperar a consciência. Não sou médico mas, aparentemente, entrou sangue no cérebro. Isso acontece com lutadores de boxe, e ele recebeu um golpe forte na cabeça quando a catapulta funcionou. Eu tirei toda a roupa dele, juntei em um nó, prendi com um cinto nas costas. Coloquei o colete salva-vidas dele. O meu não queria se encher de ar. Depois eu empurrei o corpo para baixo. Seria bom dizer alguma última palavra antes, mas estava com muito frio. A água estava gelada e salgada. Eu tinha apenas quatro a seis horas de vida. "Somos sortudos" - dizia Bonus enquanto estávamos em quatro. "Somos imortais" - dizia ele quando sobramos apenas nós dois. Agora estou sozinho. Eu consigo enxergar a praia, mas não conseguirei alcançá-la. A gente teve uma chance. A gente a perdeu. Talvez os outros tenham mais sorte. Eu comecei a nadar em direção à praia. Não porque estava esperando chegar lá. Simplesmente porque as equipes foram treinadas para sobreviver. "Enquanto estou vivo, tenho esperança", "A esperança é a última que morre" e outras besteiras. Nossa Esperança (***) foi a primeira a morrer. Luisa Astrid, minha Estrelinha, foi a segunda. Eu quase deixei este mundo quando escutei o barulho de um motor movido a água. Levantei a mão. Em uns dois minutos um pequeno navio-robô chegou perto de mim. Estridente, aerodinâmico, de tamanho de um barco de competição. Com olho preto de câmera em cima da tampa transparente. Eu tentei subir na superfície lisa. Sem efeito. O barquinho afundava. Eu era pesado demais para ele. Então eu tirei o cinto das calças, fiz um nó e coloquei na superfície do barquinho, logo na frente da câmera. O motor começou a funcionar, e o barco começou a me arrastar, como um navio menor arrasta um transatlântico. Mas o peso era grande demais para o brinquedo. A gente se movia em um arco grande. Quando a praia, em vez de ficar mais próxima, começava a se afastar, o barquinho fazia uma virada brusca. E assim nós andávamos - um arco grande em direção à praia, virada brusca para oceano, e mais um arco. Resumindo, devagar, mas sempre estávamos nos movendo na direção certa. Quando eu comecei a ter esperanças de não ter morrido, o barquinho desligou o motor. Não fiquei triste por isso. O frio fez tanto os músculos quanto as emoções congelarem. Em cinco minutos outro robô-barquinho apareceu. O olho - câmera - do meu apontou para o segundo com autoritarismo. - Nem ferrando... - tentei pronunciar e fechei os olhos. Mas o maldito pedaço de ferro enferrujado acabou sendo mais inteligente do que eu. O robô recuou um pouco, saiu do meu nó e fugiu para a praia em uma boa velocidade. Como eu coloquei o nó sobre o segundo robô, não lembro. Neste momento a memória começou a falhar. Ondas no rosto, círculos infinitos em espiral... e, de repente, um pedaço de cais de concreto, antigo, semi destruído pelo tempo. Certamente é uma visão, um delírio, porque em cima dele está parada uma mulher nua, preta de sol. O robô desapareceu. Devo nadar até o cais. Por que eu penso assim? Não devo nada para ninguém. Fecharei os olhos agora... Que voz estridente. Alta, barulhenta, gritante. Delírio infernal e uma voz destas... Tudo bem, vou nadando. O quê? Segurar os pés mais forte? Que pés? Seus? Desculpa, querida, hoje não estou a fim... Pede pra algum outro. Próxima recordação - a onda me levanta, as pontas dos pés de alguém me seguram por baixo dos braços, quase trincando as costelas. Um empurrão forte e eu saio da água como a tampa de uma garrafa de champagne... e caio com o rosto sobre o concreto trincado do cais. Alguém me afasta da água com chutes. Me afasta sem nenhum sinal de carinho. Com chutes. ...Acordo com o barulho dos meus dentes se batendo uns nos outros. O meu corpo treme constantemente. Algo vivo, quente, suave se encosta em mim. Abro os olhos - e em alguns centímetros eu a vejo, a mulher do delírio. Os olhos frios dela brilham com maldade. - O olho do mar desapareceu! Culpa sua! - declara ela com voz estridente e gritante. Ela pronuncia as palavras muito rápido, mas após cada palavra tem uma pausa considerável. Bonus tinha razão. O Projeto deu certo, e a humanidade não desapareceu do universo. Até a nossa equipe sobreviveu... parcialmente. Talvez, chegou a hora de dizer honrar vocês, amigos, com um minuto de silêncio. Donald Price, conhecido como Bonus entre os amigos, você está me escutando? Você tinha razão. Razão em tudo. Luisa Astrid, minha Estrelinha querida, você ia gostar deste mundo. Nele tem oceano. Nadezhda Kavun, Vulcãozinho, você também encontraria um lugar para você aqui. Da órbita a gente viu florestas e campos... Sim, eu lembro, eu te prometi, Estrelinha, que não vou desistir, vou encontrar uma fêmea para mim e vou me procriar. Em silêncio. Me segurando e juntando os dentes com força. Como um lobo. Uma fêmea local já esta se esfregando no meu corpo com o dela. "Senhorita, você não quer começar o processo de procriação? Não dou a mínima para você e para a sua aparência, mas o dever está me obrigando". Frase bonita para o primeiro encontro? Aparentemente, alguma coisa mudou na minha cara, porque a mulher se afastou de repente, sentou e com movimento suave ficou em pé. Ela não tinha roupa nenhuma. E ela não tinha braços. Isso mesmo, totalmente. Nem sinal de que braços deveriam crescer dos ombros. - Sim. Sou munt - disse ela tranqüilamente, percebendo a minha surpresa. - Quem? - Mutante. Levanta. Vá atrás de mim. - Para onde? - Casa. Calor. Comida. Não dando mais atenção para mim, a mulher andou em direção à praia pelo deque. De algum lugar apareceu e acompanhou-a um ciber com quatro mãos e seis pernas. Este ciber estava mancando em quatro pernas e parecia ter fugido de um resíduo de ferro velho e enferrujado. "Então é você o animal tradicional daqui!" - ficaria surpreso, zoando, Bonus olhando para este monte de ferrugem andando. Mas Bonus não existe mais. Eu me levantei com dificuldade, juntei os dentes e tentei me arrastar atrás da dupla estranha. Eu tenho que viver e morrer neste planeta. Oceano cor cinza escuro, atrás de mim. Vento gelado e céu cinza em cima da cabeça. Praia cheia de pedras à minha direita e esquerda até o horizonte. Na minha frente - ciber mancando e mutante sem braços. O meu instrutor na Terra ensinava - a primeira impressão é a mais correta. A roupa não secou, por isso eu tirei a jaqueta e a camisa, coloquei no encosto das cadeiras. Ciber tentou escondeu eles para algum lugar, mas o grito furioso da dona o parou. Almoço consistia de dois pratos: primeiro geléia cor de esmeralda e com gosto salgado e água com açúcar depois. E só. Nosso robô-cozinheiro na nave criaria uns dez pratos a partir dos mesmos ingredientes, algas, e faria alguns pedaços de pão de bônus. Enquanto o ciber alimentava a dona com uma colher, eu olhava para ela. Aparentemente ela tinha em torno de trinta anos, corpo muito bem modelado, peito maravilhoso. Sobrancelhas pretas, cabelo preto até as costas. Vênus grega. - Qual é o seu nome? - Veda - respondeu ela, - e ele (apontou com cabeça para o ciber) - Kent. - Meu nome é Ignat. - Eu sei. Quis perguntar de onde ela sabia, mas lembrei que o nome estava escrito em cima do bolso da jaqueta. - Você está sozinha aqui? - Estou sozinha aqui. Isso é uma tecnocasa. Tem por volta de oitocentas tecnocasas como esta no planeta. Em cada uma mora um munt. - Alguém fora munts mora por aqui? - Sim. Você verá. - Veda levantou bruscamente da mesa. - Descanse hoje. Amanha você irá para uma tecnocasa vizinha. É longe. Descanse bem. - Que historia é essa? E se eu não quiser ir lá? - Você deve. Salvei sua vida. Perdi "olho do mar". Você tem um dever. - E por que raios eu devo ir para essa tecnocasa? - O sistema elétrico falhou lá. Nós, munts, não podemos viver sem energia. Cibers param, plantas morrem. Você deve salvar Liana. Se você não a salvar, todo o setor perderá controle. - Ela não tem braços também? - Sim. Mesma mutação. Nenhum munt tem braços. Liana é nova, inexperiente e estava conseguindo consertar o problema. E depois a bateria acabou... Faz quatro dias que não conseguimos nos comunicar com ela. Eu tentei avaliar as possibilidades de sobrevivência de uma garota nova e sem braços na floresta. Chacoalhei a cabeça e tentei imaginar ela feia como o pecado. A alma não ficou mais aliviada. A mochila machuca as costas. Perdi o costume. Não tinha passeios turísticos no espaço. O que o Bonus faria no meu lugar? Também iria no segundo dia após a aterrissagem a uma distância de oitocentos quilômetros? - Como encontrarei a droga dessa tecnocasa? - pergunto à Veda. - Aqui está o mapa. A tecnocasa está perto do rio. - Qual rio? Tem três por aqui... Tudo bem, em qual margem do rio? - Não sei. Você deve encontrar a tecnocasa e a Liana. - Eu tenho que andar oitocentos quilômetros com bússola e encontrar não sei o quê. É isso? - Sim. - Você acredita nisso? Se eu desviar apenas dois quilômetros... - Não tem ninguém além de você para fazer isso. Essa foi a minha conversa com Veda. Ela não tinha idéia sobre os perigos da viagem, mas afirmou que não existiam animais selvagens. A Onda os fez desaparecer. Junto com a primeira população. Aqueles que moraram aqui antes da Onda. A Onda chegou até aqui enfraquecida. Quase nenhuma. Só mudaram um tiquinho de nada as constantes universais. Quase imperceptivelmente. O que pode fazer uma mudança das constantes universais em milésimos por cento? Apenas alterar a química. Bioquímica. Reações químicas quase imperceptíveis, chamadas "vida". Os seres primitivos se adaptaram. A troca de gerações com eles aconteceu muito rapidamente. As raízes das plantas sobreviveram o ano infeliz. As larvas de alguns animais também. Mas aquilo que era chamado de vida propriamente dita desapareceu. Ossos brancos sob o sol, árvores mortas no lugar onde estavam florestas. E grama novinha, verde, com cor de esmeralda. A grama daqui é linda. A Estrelinha teria gostado... Eu já tinha andado uns dez quilômetros quando encontrei o robô-barquinho. O "olho do mar", de acordo com a Veda. A bateria dele descarregou e as ondas o jogaram para a praia. Fiz uma pirâmide de pedras na praia marcando o lugar, escondi a mochila, prendi o "olho do mar" com cordas e comecei o caminho de volta. O "olho do mar" pesa em torno de quarenta quilos. Como eu o arrastei por dez quilômetros, não sei. Não consigo lembrar. Só lembro que as cordas cortaram todos os meus ombros. Só me segurei de raiva. - Por que voltou? - a Veda me cumprimentou assim - Você deve salvar Liana. - Tome o seu ferro velho. Eu nunca devo nada para ninguém. Lembre-se disto. - Você cansou. Descanse hoje, vá amanhã. E não se distraia com coisas secundárias. Sua tarefa: salvar Liana e a tecnocasa dela. Provavelmente, a idéia de descanso até amanhã era boa. Mas eu segurei a Veda pelos cabelos, meti um beijo salgado, com cheiro de suor na boca dela e fui sem olhar para trás. Andar sem carga foi fácil. Sobre que pensava? Claro que sobre a Veda. Sobre o fato de que a voz dela em apenas um dia parou de ser tão estridente, o vocabulário ficou mais rico, e a fala começou a lembrar fala humana de longe. Será que ela foi educada por cibers mesmo? Ela se recusou a falar sobre si mesma. Sobre o planeta falou muito pouco. Mas é possível adivinhar algumas coisas. A primeira leva de colonizadores morreu. Mas existem pessoas no planeta. São a segunda e, provavelmente, terceira geração dos moradores. Quais são estes setores que os munts que vivem em tecnocasas controlam? Em que consiste o controle? Quem pode ser controlado por munts sem braços? Este mundo não é tão simples. Ah, mas o que é que eu tenho a ver com ele? Astrid, minha Estrelinha... A praia virou para o norte de repente, agora eu não podia mais seguir por ela. Eu determinei a rota pela bússola, escolhi os objetos visíveis de longe e arrumei a mochila nas costas. Os ombros doíam. O sol estava se pondo. Nem perguntei como os nativos chamam o planeta. Estrela é sol. Isso é claro. EH-alguma-coisa, como os cabeludos chamaram ela, mas os colonizadores não se preocupam com besteiras. Brilha, então é o sol. Sem dúvida. Mas planeta tem nome. Quem era responsável pela navegação era o Bonus. Tradição nossa. Porque para a gente não fazia mais diferença para onde ir, mas Bonus tinha a língua melhor colocada do que eu. Não gosto de discutir sobre besteiras. Começou uma floresta. De repente, sem introdução. Estranho. Árvores terrestres, mas a floresta não é terrestre. O sol se escondeu pela metade atrás do horizonte, e ficou completamente escuro na floresta. Eu decidi fazer uma parada para dormir. Coloquei corda entre duas árvores, joguei plástico por cima, coloquei galhos e pedras nas pontas - virou uma barraca. Veda não tinha uma barraca de verdade. Mal sentei e a chuva começou. Chuva pequena, que pode durar por uma eternidade durante o outono. Se não estivesse chovendo, eu estaria escutando nervosamente os barulhos da floresta alheia, mas durante a chuva qualquer floresta parece amigável e tranqüila. Não acreditei quando a Veda disse que o planeta era seguro. Para que ela precisa de um stunner com bateria solar? É um brinquedo de verdade. Mataria até um boi. E por falar em brinquedos - eu segurei o stunner e ajustei a potência no máximo. Por uns cinco minutos fiquei pensando se valia a pena jantar. Dormi antes de decidir qualquer coisa. De manha eu comi a geléia verde, tomei água da garrafinha e comecei a fazer uma barraca de plástico. Seria melhor ter feito isso na tecnocasa, mas a Veda estava contra qualquer atraso. Vulcãozinho adorava costurar. Estudos deixavam muito pouco tempo livre, mas a gola da camisa do Bonus sempre tinha algum desenho costurado. - Isso é cultura nacional - afirmava Vulcãozinho. - Temos que cuidar e guardá-la. - Mas não é a minha cultura - tentou protestar Bonus, educado de maneira politicamente correta. - Você não gosta da minha costura? Eles brigavam freqüentemente e alto. E faziam as pazes da mesma maneira. Bonus colocava Vulcãozinho, que gritava, no ombro e levava para a cabine deles. Ou para o nosso quarto - nos últimos anos do curso cada equipe tinha uma sala própria. Tentar ajudá-los a fazer as pazes era inútil e perigoso. Juntos, como se não estivessem brigando, eles atacavam o auxiliador. Mas uma vez eu vi Donald com cara pálida e visão perdida. - Ignat, ela não me quer mais - falava ele perdidamente. - Não quer mais de jeito nenhum. Eu coloquei uma chave inglesa na mão dele e mandei fazer alguma coisa sem importância perto da saída da nave. Depois encontrei a Nadezhda e fiz uma cena Como no teatro, falando: "O que é que o Bonus está fazendo perto da saída da nave, com aquela chave inglesa na mão?"Como ela correu... E tudo voltou a seguir a história normal. Com barulho, com gritos, com ameaças dos dois lados. Eu apanhei dos dois. Por volta de meio-dia a barraca estava praticamente pronta. Bem nas coxas, mas foda-se. Determinei a direção pela bússola e continuei o caminho. Logo eu descobri que na floresta deve-se olhar para a bússola o mais freqüentemente possível. Em uns cinco minutos eu desviei quase vinte graus da rota traçada. Encontrei um rio pequeno, preenchi a garrafinha com água limpa. Joguei para fora água cheia de terra da garrafinha, preenchi com limpa. Vi um veado na floresta. Ele bebia água uns trinta metros para baixo na correnteza. Ele me via mas não tinha medo. Isso diz alguma coisa. Durante o treinamento para sobrevivência na floresta o Instrutor dizia: "Coma tudo que o macaco come. Se conseguir, coma o macaco também". Naquela época a gente dava risada. Onde vou encontrar um macaco num outro canto da Galáxia? Serve um veado? Tenho cinco quilos de geléia verde comigo. Quando acabar, vou ter que viver de caça. Então, uso stunner para caçar? Por que a Veda não disse diretamente? Porque ela não quer contar nada sobre o planeta? "Você verá" - e fim da conversa. Pros diabos a Vera. Aqui está cheio de frutas e vegetais. Mas será que posso comê-los? Se a Onda passou por aqui (e a Onda passou por aqui), poderiam começar mutações. E esta fruta, tão parecida com ameixa... Vai que você a come e descansa para sempre? Interessante... Mas não está na hora ainda. Primeiro tenho que salvar a Liana, depois vou experimentar. A floresta virou um campo. As nuvens se abriram, e o sol começou a me queimar. Forno. Eu coloquei o stunner no outro braço, em direção ao sol. A embalagem fazia papel de bateria solar. Quando nós saímos da Terra, não tinha tecnologia para isso ainda. Estranho tudo isso. Planeta estranho, população estranha, eu estou me comportando estranhamente. No segundo dia depois de aterrissar fui para ninguém sabe onde. E ninguém fica surpreso. Eu - tudo bem. É difícil surpreender aquele que não espera nada da vida. O suor sujou a camisa. Pensamentos se tornaram um nó só. Apenas uma frase estava na cabeça. Duas frases de um verso: Apenas uma alegria eu tenho Dedos na boca, e subiu alto... Eu o repetia uma vez atrás da outra. De repente lembrei que o autor é Esenin (****) e que na versão original o verso era um pouco diferente.. O ritmo quadrado destas frases juntava-se com os passos, escondia o cansaço. Astrid, Estrelinha minha, por que você me traiu, por que você morreu? O campo acabou, eu entrei na floresta novamente. O calor virou um tempo refrescante - chuva. À noite encontrei um nativo velho. Cabeludo, barbudo, absolutamente nu, ele tirava frutas da árvore. Observação número um: roupa não está na moda por aqui. Observação número dois: coma tudo o que o macaco come. As frutas daqui podem ser comidas. - Olá. Meu nome é Ignat. O homem virou na minha direção, murmurou alguma coisa ininteligível e foi embora. E eu fiquei parado, olhando cegamente atrás dele. Todas as perguntas saíram da minha cabeça. Porque o homem foi castrado. Isso mesmo, completamente. Saco inexistente, do pênis sobrou apenas um pedaço cortado de maneira torta de uns dois centímetros. Verifiquei o stunner por algum motivo. Alcançar e interrogar o nativo não deu mais vontade. "Não se pergunta sobre o que não é da sua conta, caso não queira escutar algo que pode não gostar" - dizia Nadezhda, lendo Mil e Uma Noites. Em quais casos um homem pode ser castrado? Versão 1: limitação da população. Não passa. A primeira Onda passou por aqui há mais de quatrocentos e cinqüenta anos, os colonizadores apareceram aqui depois. Eles não poderiam se procriar muito. Versão 2: Castigo. Cruel, e diz sobre idade das pedras. Em qualquer caso esta operação cirúrgica diz sobre a barbaridade da idade das pedras. Versão 3: Batalha para manter o genoma limpo. Após as mutações, causadas pela Onda, isso é bem provável. Menino nasceu um mutante, não o mataram de vez mas tiraram a possibilidade de se procriar. Humanismo da idade das pedras. A gente foi avisado que no planeta poderia existir idade das pedras. Versão 4: Idiotices religiosas. Este mundo não presta. De acordo com qualquer uma das versões. - A sua meta é manter a humanidade no universo - diziam os instrutores para nós. - Se procriem a vontade -- é apenas isso o que pedimos de vocês. Se conseguirem manter a civilização no nível da escrita - parabéns e glória eterna para vocês. Caso contrário - não fiquem tristes. Daqui a cinco-dez anos a humanidade re-inventará tudo. O importante é ter alguém para inventar isso. A tarefa está clara? - E as colônias? - perguntou Vulcãozinho em uma das aulas. - A colônias estão condenadas. Junto com a maioria da população da Terra. Não temos a possibilidade de evacuar todos. Pensando sobre isso, saí da rota novamente. Se eu tivesse uma planilha navegacional por aqui... Mas ela ficou no shuttle. E o shuttle no fundo do oceano. Os instrutores nos avisaram que não dá para confiar nos equipamentos. Quinhentos anos - tempo demais para qualquer ferramenta mais complicada do que um martelo. - Não confie nas incubadoras- diziam os doutores para as nossas garotas. - Vocês vão ter que dar à luz sozinhas. Se conseguirem ligar apenas uma incubadoura, vocês terão sorte. Caso não consigam... Uma pessoa saudável pode dar à luz quinze vezes. De preferência, mais do que isso. E não deixem isso acontecer de qualquer jeito. Implantem sêmen artificial. Daremos material para vocês. Nas condições de estabilidade criogênica os bancos de genes podem ser armazenados eternamente. O banco ficou na nave. A nave - na órbita. Painel de controle - no shuttle. E o shuttle no fundo do mar. E afinal, não sou mulher para dar à luz. Bem, pensemos e esqueceremos. Quanto eu andei hoje? Como descobrir a distância pelo mapa? Foda-se. Tem três rios. Quando chegar até o primeiro, eu penso. - Droga - xinguei eu em alguns minutos. - E este buraco molhado pode ser considerado um rio, ou não? Aparentemente não, por isso ele não está no mapa. Bem, encontramos um primeiro problema - como diferenciar um rio de um não-rio? O zoom do mapa encaixa vinte quilômetros em um centímetro. Em dois dias eu andei mais ou menos quatro centímetros. De quarenta. Não dá para morrer de fome em um mês. Veda pensou tudo certo. Tomará que a moça não faça nenhuma besteira. Vou ficar revoltado se andar oitocentos quilômetros e encontrar o corpo de um suicida. Ele estava sentado agachado embaixo da árvore e esperava eu acordar. Cabelo despenteado, barba, stunner na cintura e bolsa, feita de couro, nas costas. Se bem que eu vi a bolsa depois. É difícil determinar a idade de um ser cabeludo e barbudo assim, mas dificilmente ele teria mais de vinte e cinco anos. E ele usava roupa. Jaqueta de couro, calça de couro, sapatos de couro também. Bem, aparentemente roupa não saiu de moda totalmente ainda. E não vou parecer um bárbaro. - Bom dia - disse ele, saindo da barraca. - Bom dia. Você é o novo ranger? - Não, não sou ranger. Eu vou para a tecnocasa da Liana. Quebrou alguma coisa lá, tem que arrumar. - Eu pensei que você fosse um ranger. Você tem stunner, mas você não é um ranger. Estranho. - Meu nome é Ignat. E o seu? - Tobi. Se for falar completamente, é Tobias, mas ninguém me chama assim. Todos dizem Tobi e Tobi. Você me chama de Tobi também. Estou acostumado a ser chamado de Tobi. - Tobi, você sabe com chegar na tecnocasa da Liana? - Sei. Eu morava lá. Você tem que ajudar a Liana. Ela é boazinha. A mãe dela me ensinou a ser um ranger, mas ela não está mais na tecnocasa. - Tobi, você não poderia me acompanhar até a tecnocasa? Não sei o caminho e alguma coisa pode acontecer com Liana. - Até a Liana? Claro, eu te acompanho - ficou feliz ele. - Já não a vejo há uns cem anos. E ela não me viu durante cem anos. Já faz dois anos que não vou lá. Que sorte. Alguém que sabe o caminho. "Somos sortudos" - dizia Bonus quando estávamos em quatro. -...Eu pensei que você fosse o novo ranger. Você tem stunner. Eu queria determinar quem iria guardar qual setor. Às vezes trocaríamos. Eu tenho um setor muito grande, mas estou sozinho. Precisa de mais rangers. Eu disse para a Veda: "Precisa de mais rangers", mas ela fica brava. Diz: "Onde vou encontrar mais rangers? Vou parir um? Traz um menino que eu educo ele". Mas os degs não querem mais doar meninos para as munts educarem. Eu falo para eles: "Precisa de mais rangers", mas eles não querem. E Veda fica brava. Eu falo para ela que não precisa se preocupar à toa. Eu comecei a pensar que o acompanhante não era um bem tão importante assim. Entendi também que não sei andar na floresta. Tobi andava entre as árvores levemente e sem barulho. Eu vi passo assim nas aldeias indígenas - pernas meio dobradas nos joelhos. Nenhum galho bateu no rosto dele, nenhum galho se quebrou embaixo dos pés. - A Fiesta nunca fica brava. Ela é sempre boazinha e triste. E não quer ter uma menina. Mas se ela não tiver uma filhinha, quem vai cuidar da tecnocasa depois dela? - Tobi, você mesmo fez a sua jaqueta? - eu perguntei para tentar mudar um pouco de assunto. - Eu mesmo. Matei um veado, tirei a pele eu mesmo, costurei eu mesmo. Somente a pele as mulheres da aldeia me ajudaram a fazer. Eu não sei tratar pele. Elas sabem, mas não explicam como que faz. Somente dão risada. São más. E eu morava sozinho. Peguei linha e agulha com Veda, porque as da aldeia são más. São gananciosas também. Não darão sem ser em troca de alguma coisa. E eu não podia ficar na aldeia por muito tempo. Sou um ranger, tenho que vigiar o setor. No começo eu tentei achar alguma coisa de útil nas palavras dele, depois me desliguei. Tobi andava na frente, pegando frutas das árvores e jogando na boca. Eu o alcançava com dificuldade, respirava que nem um trem e perdia as forças constantemente. - Seu stunner está desregulado - disse Tobi na hora de descanso. - Você pode matar assim. Olha como deve ser - ele tirou o dele e mostrou a configuração. O stunner estava configurado para paralisar. Não quis discutir, mas regulei o meu da mesma maneira. Se precisar, é possível trocar a configuração com um movimento de dedo apenas. À noite Tobi ficou feliz olhando a minha barraca. - Casa pequena! Vou fazer uma assim para mim também. Vou pedir pra Liana tecido transparente, ela me dará e vou costurar. Pela primeira vez comi comida de verdade. Tobi coletou frutas amargas e juntou com a geléia verde. Salgado com amargo - eu pensei que sairia algum veneno, mas até que ficou gostoso. E no próximo dia eu descobri o que os rangers fazem. Tobi paralisou com o stunner uma menina nua. Ela nos viu tarde demais, tentou correr, mas conseguiu dar dois passos apenas. Tobi a virou de costas delicadamente, a deitou com cuidado, tirou do rosto e ombro grama que estava grudada lá. Depois tirou da bolsa uma caixinha preta de metal. - Que bonita. E muito novinha também. - O que você vai fazer com ela? - O que deve ser feito. Primeiro vou fazer uma análise e, se a análise for boa, colocarei o sêmen nela. Se quiser, posso fazer uma análise com você. Ai você coloca o sêmen nela. Com estas palavras ele abriu a caixinha preta. Embaixo da tampa tinha dois botões e três indicadores em forma de barra: vermelha, azul e verde. Tobi encostou a caixinha no ombro da menina e apertou o botão esquerdo. Após um segundo a barra verde se iluminou por completo e a azul por três quartos. Tobi olhou para os indicadores, colocou a caixinha no antebraço dele e apertou o botão direito. No ombro da menina apareceu uma gota de sangue. Aparentemente, a caixinha era um diagnostico primitivo. Tobi tirou a caixinha do antebraço, lambeu a gota de sangue que saiu e apertou os dois botões juntos. A visão do aparelho e a certeza do ranger por algum motivo me acalmaram. O que acontecia não era uma caça humana. Tinha algum sentido em tudo isso. - E ai? - perguntei eu indiferentemente. Tobi virou a caixinha para mim. As barras indicadoras ficaram um pouco mais curtas. - A minha análise não é muito boa, mas melhor do que a dos peladinhos e dos degs. Munts dizem que se as barrinhas são mais curtas do que antes e não chegam até aqui - ele apontou com a unha, - é necessário colocar sêmen. Mas não é verdade que ela é bonita? Eu gosto de colocar sêmen nas bonitas. Depois começou um ato sexual normal. Eu sentei embaixo da árvore e me obriguei a olhar. Isso não podia ser considerado um estupro. Tobi se comportava educadamente e delicadamente. Massageou o corpo da menina até ela demonstrar sinais de vida. Ai começou massagens das zonas erógenas. Em geral, quando a menina recuperou a consciência totalmente, Tobi a esquentou de uma meneira que ela não podia mais resistir, e nos gritos dela não tinha nem medo nem dor. Tudo bem quanto a isso, mas a menina era virgem. Ela gritou muito alto e saiu muito sangue. Depois começaram as lágrimas. Tobi fez carinho nela por um bom tempo, beijou nos olhos, fez carinho nos cabelos. Eu cansei de olhar para os carinhos deles. O procedimento de "colocar sêmen" foi justamente o que eu tinha pensado desde o começo: ato sexual com o objetivo de engravidar uma menina desconhecida. Provavelmente, eles têm problemas quanto a nascimento de crianças. Colonistas salvagens não querem se procriar com a velocidade necessária. Não tenho nada a ver com isso. Uma hora depois o casal estava feliz e tranqüilo. A menina estava rindo, Tobi a alimentava com os restos da geléia verde com frutas. Eu coloquei o plástico no chão, cobri a cabeça com a jaqueta e dormi. Meia hora depois Tobi me acordou. - Vamos? Ainda está claro, podemos chegar longe. Nós pegamos as coisas e continuamos andando. Menina nos seguia, chorando de vez em quando. Tobi não ligava para ela. Depois de um tempo ela ficou para trás. - Não é verdade que esta peladinha é bonitinha? - começou Tobi. Ele queria compartilhar o assunto. - Uma pena que ninguém a tomou antes. Não gosto de colocar sêmen nas que não foram tocadas ainda. Tem que fazer carinho nelas depois, senão elas ficam com medo. E eu não gosto de fazer carinho. Você faz carinho e elas vão seguir você. - Qual é o nome dela? Tobi olhou para mim com cara surpresa. - Ela é uma peladinha. Peladinhas não têm nomes. Animais têm nomes? - Às vezes têm - disse eu com preguiça, tentando entender a informação nova. Pelados. Sem nomes, sem roupa. Animais. No planeta tem munts, pelados e rangers. O planeta pegou uma sombra da Onda e começaram as mutações. Uns perderam a mão, outros o cérebro. Maravilha... - Tem muitos pelados por aqui? - perguntei eu. - Muitos. Aqui muitos. No norte poucos. Lá é frio e eles não gostam quando ta frio. No sul e leste eu nunca estive. Lá não são meus setores. Aqui tem muitos deles. Eu acho que você anda fazendo muito barulho, por isso eles fogem. Eu, quando ando sozinho, os encontro todo dia. A geléia verde acabou, então Tobi passou para frutas. Como ele disse, aqui tudo que tem gosto bom pode ser comido. Um dia depois eu cansei do regime de frutas, e eu paralisei com o stunner um bichinho, parecido com um coelho. No fim era um coelho mesmo. Um coelho terrestre comum, levado por uma das levas dos colonizadores. Tobi ficou olhando com interesse enorme como eu estava cozinhando o coelho em uma lata. - Eu sempre asso a carne - confessou ele. - No fogo, ou coloco nas folhas, faço um buraco na fogueira e queimo na terra quente. Foi Corina quem me ensinou. É a mãe da Liana. - Amanhã você me mostrará como você faz. Ele brilhou de alegria. Inteligência no nível de uma criança de 10-12 anos. Provavelmente, a Onda atingiu ele ou os pais dele. Planeta de retardados. Tobi finalmente me convenceu a ser analisado pela caixinha, e ficou andando com cara abatida por um bom tempo. - Você tem a melhor análise que eu já vi. Melhor do que as pessoas das aldeias inclusive! Você que deveria ter colocado sêmen naquela peladinha. Esta barrinha - ele apontou no indicador - seria bem curtinha. Esta mais curtinha ainda. E a do meio nem existiria. - Não sou um ranger. Tobi ficou pensando um bom tempo sobre as minhas palavras. A gente encontrou mais peladinhos no mesmo dia. Um homem e uma mulher estavam fazendo amor e não percebiam nada em volta deles. A gente poderia encostar neles, nem precisava do stunner para eles não fugirem. Mas Tobi me arrastou para fora. Por algum tempo ficamos andando em silêncio. Tobi parecia confuso e mexia a cabeça sem parar, como se estivesse discutindo com ele mesmo. Mais tarde encontramos mais três peladinhos de uma vez só. Um homem e duas mulheres. Eles estavam deitados em forma de estrela na areia perto do rio e, levantando os pés ao mesmo tempo, batiam nas solas dos pés uns aos outros. Eu olhei para Tobi. O ranger nem pensou em encostar no stunner. Ele ficou olhando com curiosidade para o trio até que eles se foram, e depois ficou quieto por um bom tempo e ficou andando, parecendo deprimido. - Não conta para a Liana que eu sou um ranger ruim - não agüentou ele. - Eu sei que sou ruim, a Carina já me falou. Mas eu não encosto nos peladinhos que estão juntos. Eu sei que isso não está certo. Mas mesmo assim não consigo encostar neles. Corina sempre me xingava por causa disso. - Você é um bom ranger - eu bati no ombro dele. - Não precisa machucar peladinhos se eles amam uns aos outros. E sobre este três... Há algum tempo eu tinha lido que indígenas da Amazônia se divertiam da mesma maneira... Não, é besteira tudo isso. - O quê? - Entenda, Tobi... Indígenas da Amazônia - eles, obviamente, eram bárbaros. Mas alguma inteligência eles tinham. Eu achava que sabia tudo sobre o Tobi e que estivesse preparado para qualquer surpresa deste mundo. Errei. Na manhã seguinte Tobi atirou com o stunner num peladinho. Pegou a caixinha preta, fez a análise e rapidamente, em dois ou três minutos, castrou o rapaz. Colocou uma linha grossa sobre o saco, jogou um líquido verde sobre a ferida e foi lavar as mão. Nenhuma emoção - nem dó, nem piedade - trabalho comum. Eu consegui segurar o vômito com muito esforço. O peladinho acordou, se encolheu como uma criança recém-nascida e começou a gritar. - O líquido verde queima muito - explicou Toby. - Uma vez cortei o dedo e joguei o verde - aí cheguei a gritar mais alto ainda. "Queria eu arrancar as suas bolas" - pensei eu com raiva. Na cabeça estava um pensamento apenas: o que este cortador-de-bolas faria comigo se a minha análise não tivesse sido boa?... - ...Não, os rangers não cortam os pênis. São os camponeses. Para que os peladinhos não atrapalhassem as mulheres deles. Genes ruins ficam no saco, para que cortar mais alguma coisa? Os rangers não fazem isso. Bem, é uma correção genética afinal. Faz sentido. É necessário devolver a inteligência à raça. Mas os meios... E o que eu faria? Métodos dependem da situação. Eu não sou ninguém para julgar. Não sou daqui. Encontrei uma planta que lembrava muito batata. Tobi me disse que ninguém planta isso nos vilarejos. Mas alguém disse para ele que ISSO não deve ser comido. - Batata crua não deve ser comida - explico eu, jogando batata limpa na lata. - Nós comeremos a cozida. Agora o ranger estava observando com atenção as minhas manipulações. Dali a pouco o meu prato favorito - batata cozida com sal - estava pronto. Tobi também gostou dele. Eu esperava deixar alguma coisa para o dia seguinte, mas... Agora eu estava deitado perto da fogueira escutando o Tobi. Hoje ele colocou sêmen em mais uma peladinha. Desta vez uma mulher mais velha. Não precisou do stunner. A mulher veio sozinha, obedecendo o gesto do ranger. Tobi mostrou uma coleira de couro meio caída em cima do ombro dela. Colocou o cabelo de lado. Na orelha da mulher tinha um buraco de quase dois centímetros. Neste buraco alguém colocou a coleira e fez um nó. - Fugiu de um vilarejo - explicou o ranger. - Ela foi amarrada à noite e fugiu. Mordeu a coleira e fugiu. Isso é bom, que ela é da aldeia. As da aldeia são mais quietas, educadas. Tobi desfez o nó e jogou fora a coleira. Obedecendo ele, a mulher deitou de costas. Não fiquei olhando o que aconteceu depois. Até a escuridão Tobi andava deprimido e quieto. Eu já tinha acostumado com a fala inútil e interminável dele e agora estava sentindo falta de alguma coisa. Mas só consegui conversar com o ranger perto da fogueira mais à noite. - Minha mãe foi das peladinhas dos camponeses - assumiu Tobi. - Ela foi treinada para levar a água do poço. E ela levava água para todas as casas. E um dia ela quebrou a perna. O osso recuperou de maneira torta, e ela não podia mais carregar água. Diversas vezes a levaram para a floresta, mas toda vez ela voltava. Então a mataram com a coleira de couro. Levaram para a beira de um buraco, colocaram a coleira em volta do pescoço - e a sufocaram. E jogaram o corpo no buraco. Enquanto ela estava viva eu não a considerava mãe. É vergonhoso ter mãe das peladinhas. Mas quando a mataram... Mesmo sendo uma peladinha, não deviam fazer isso com ela. Eu disse isso a eles, mas eles começaram a me zoar. Aí eu fui para a floresta. Lá encontrei um ranger e ele me levou até a tecnocasa da Corina. Lá morava, e a Liana era uma criança ainda. E agora a Corina não mora mais lá... À noite eu acordei por causa de dor no estômago. Me arrastei para fora da barraca, enfiei dois dedos na garganta e joguei na grama o que restou do jantar. Com a luz do isqueiro achei na caixinha de pronto-socorro um remédio, tomei junto com dois litros de água. Deu certo. Não devia ter comido batata. O Tobi tentou me avisar. Ou é alguma mutação, ou algum veneno no solo. Entretanto, o ranger está se sentindo bem. Ficava andando de um lado para outro, sem saber como me ajudar. Dizem que é possível acostumar o corpo aos venenos, se começar a tomá-lo devagar. Tobi se acostumou desde criança, mas eu não pertenço a este lugar. Me sentia como um pedaço de merda num poço. Mal tinha adormecido quando um veado se atrapalhou na corda que prendia a barraca. Estragou todo o plástico. Quase levou nos chifres o resto da barraca, mas atirei nele com o stunner na potência máxima e, por mais incrível que possa parecer, acertei. Eu e o Tobi ficamos arrumando na escuridão as cordas e o que sobrou da barraca e tirando o plástico dos chifres do animal. Conseguimos terminar antes que ele acordasse. A Veda dizia que na floresta não tinha perigo. Veado não é um predador. Mas e se ele pisar em cima de nós? Acidente de trabalho? E como o sistema ecológico se vira sem predadores? Não pode um sistema ecológico normal sobreviver sem predadores, predadores devem existir. Com dor na consciência interrompo os meus pensamentos. Estou pensando igual ao Tobi. Palavras sem sentido na cabeça. Deve ser a convivência... De manhã, com raiva, me sento para tentar arrumar a barraca. Tobi diz que vai visitar o vilarejo vizinho em busca de notícias. Eu me pergunto: por que raios a gente dormiu na floresta? Pontualmente uma hora depois Tobi chega correndo como um louco. - Liana está neste vilarejo! Mulheres perto do poço me disseram! Rapidamente, sem arrumar, jogo a barraca meio desfeita na mochila e corro atrás dele. A floresta termina de repente. Na nossa frente está uma montanha. Eu achava que faltavam mais três dias para chegar até ela. Nos pés da montanha tem um vilarejo. Três dúzias de casas de madeira e cinco de pedra. Sol brilhante, campo arrumado numa colina, homens trabalhando. Dá para ver peladinhos em alguns lugares. - Por que no vilarejo tem apenas mulheres peladinhas? - Tem homens também - diz Tobi meio triste, - mas poucos. Homens são inquietos, não gostam de trabalhar, atrapalham as mulheres. E as mulheres são quietas, calmas. Se alguém quer se divertir com elas ninguém fala nenhuma palavra contra... Ignat, eu não vou mais para frente. - Por quê? - Não quero encontrar a Liana. Mas você deve ajudá-la. - Vocês brigaram por acaso? - Bem... Não bem brigamos... - Entendi. Pacote informativo 3 Se a Onda tivesse chegado cem anos antes, a humanidade não a perceberia. Até o último momento... Se a Onda demorasse mais cem anos para chegar, nós, dando risada, mudaríamos para a galáxia vizinha por um tempo para voltar nas ruínas depois de uns quinhentos anos. A Onda escolheu a hora certa. O planeta viu o perigo, mas não tinha forças para salvar todos. O motor-GS já era conhecido, a Terra até se deu ao luxo de criar algumas colônias, mas estes foram apenas os primeiros passos no espaço exterior. Naves Gravi-Saltadoras eram muito caras, a construção delas fazia muito estrago para a ecologia. E as usinas da lua e Marte tinham começado a dar lucro apenas há alguns anos, e o poder delas não se igualava a dez por cento do terrestre. A Onda escolheu a hora certa. E o planeta concentrou todas as forças para salvar... Não a população - isso era impossível. Para salvar a raça humana. Jogar no espaço alguns milhares de naves pequenas na esperança de que centenas deles pudessem sobreviver à Onda e dezenas conseguissem criar colônias nos planetas semelhantes à Terra. A humanidade sobreviveria como uma espécie biológica e, milhares de anos depois, talvez conseguisse se levantar novamente. Nós eramos chamados de Elite Estelar, os Esquadrões da Vida. Éramos selecionados aos quatorze-quinze anos de idade e preparados durante cinco anos. Os treinos eram assustadores. Quatro entre cada cinco pessoas não agüentavam e caíam fora. Ou morriam. Mas mesmo os restantes foram muitos. Ou o número de naves era pequeno demais. Não importa o motivo verdadeiro, mas apenas metade de todas as tripulações conseguiam sair para o espaço para brincar de esconde-esconde com a Onda. Todos queriam ir para espaço. Nós fomos treinados para isso, fomos criados para isso. Mas agora não posso dizer com certeza quem teve mais sorte - aqueles que foram, ou aqueles que ficaram. ----------------------------- - ...Dá uma olhada na caverna - uma mulher idosa me deu a dica perto do poço. - A molecada levou alguém lá ontem. Eu olhei para a montanha. Era difícil não ver a caverna. A caverna podia ser considerada uma gruta. Daria para colocar um hangar para alguns shuttles nela. - Obrigado - disse eu e andei para cima em direção à montanha. De perto a caverna parecia maior ainda. O frio da parte superior fazia um contraste confortável com o calor de fora. Perto da parede distante brilharam com luz branca estalactites e estalagmites. Onde vou procurar o alvo? - Estou aqui - voz aguda fez eco na caverna. Eu fui para a frente. Era ela mesmo, a mutante. Sem mão. Amarrada na coluna criada pelas estalactites grudadas por uma coleira. Suja e com frio, ela estava sentada sobre um punhado de grama seca. No lado de dentro da perna - sangue seco. Ou ela perdeu a virgindade há pouco tempo, ou é menstruação. Se bem que isso é problema dela. A Munt se escondeu embaixo do meu olhar. - Faz tempo que está sentada assim? - eu perguntei. - Segundo dia. Eu tirei a faca, experimentei a lâmina com a unha. A menina abaixou a cabeça num jeito confiante, para que eu tivesse menos problemas para cortar a coleira. Por algum motivo eu queria que ela se assustasse ao ver a faca. - Me segue, pererequinha. - Eles estão vindo aqui. Eu olhei para trás. Três brigões locais andavam agitados em nossa direção. - Ei, ranger! Esta peladinha é nossa! - Vocês três! Vocês devem me obedecer. Assim que eu falar "um", entenderam? - Por quê? - os três ficaram interessados na minha idéia. - Eu sou dos Esquadrões da Vida. - E nós moramos aqui. Não entenderam, retardados. Mas eu não esperava por isso. - Vocês quebraram as regras. Munts não podem ser machucados. Eles devem ser escutados, eles devem ser ajudados. Eu vou castigar qualquer um que machucar um munt. - Ela veio sozinha até nós - respondeu o do meio, o mais alto. - Nós não a chamamos. Disse: "Me dê comida". Munts de verdade não pedem comida. Munts sempre têm muita comida. Por que iríamos dar comida para ela em troca de nada? Deixe que ela trabalhe pela comida. Se quiser comê-la, não temos nada contra. Mas se quiser ela só para você, azar o seu. Nós a encontramos primeiro. Ela é a nossa peladinha, entendeu? As negociações chegaram a um beco sem saída. Eu peguei no chão três pedras do tamanho de um punho e comecei a jogá-las no ar. A Estrelinha sempre gostava de olhar como eu fazia isso. Os burros locais também se interessaram. Aparentemente, eles nunca foram para um circo. A visão de pedras voadoras os deixou de boca aberta.. - Vocês machucaram um munt e não quiseram me obedecer. Por isso eu vou castigar vocês - disse eu. Joguei uma pedra para o alto e as outras duas joguei nos rapazes, que estavam parados um ao lado do outro, uma atrás da outra. Peguei a terceira pedra e joguei no líder deles. Atrás das minhas costas Liana gritou assustada. A cinco metros de distância é possível matar usando uma pedra do tamanho de um punho. Eu não queria matar. Se quebrei algumas costelas, problema deles. - Vamos, pererequinha. Os dois rapazes estavam tentando respirar, mas o líder tentou levantar. Tive que acalmá-lo com chute na boca. Perto do poço eu parei e lavei a Liana. Primeiro joguei dois baldes de água gelada, depois limpei com grama. Depois tive que tirar a sujeira que saiu da grama. Liana ficou azul de frio, começou a tremer e bater os dentes. Coloquei a minha jaqueta nas costas dela, fechei o zíper. Os camponeses começaram a se juntar em grupos e ficaram olhando para nós em silêncio. - Mostra o caminho. - Para onde? - Para a sua casa, para onde mais? - Eu não sei. Eu me perdi... Eu xinguei feio em voz baixo, olhei para a bússola e a levei ela na direção para a qual, de acordo com as minhas suposições, estava a tecnocasa. Perto da floresta virei a cabeça e olhei para trás. Duas dúzias de pessoas com estacas e ferramentas nas mãos estavam parados perto das últimas casas, olhando secamente para nós. Levantei o meu braço para eles. Em um movimento seco e descuidado. - Não consigo mais - implorou Liana. - Certo - eu joguei a mochila, abri a barraca rasgada e olhei para a mutante. Não consegue segurar a agulha. Não consegue achar galhos para a fogueira. Estou arrastando uma inutilidade comigo. Liana ficou vermelha sob o meu olhar e começou a mexer com o corpo, tentando escapar da minha jaqueta. Por algum milagre, ela conseguiu. - Adeus. - Senta! - gritei eu. E pensei que seria uma boa idéia amarra-la em alguma árvore com uma coleira. Liana olhou na minha direção, olhou para a floresta mas sentou assim que eu pensei sobre o stunner. Eu coloquei a jaqueta nela novamente. E comecei a fazer uma fogueira. Estava esfriando. Na luz da fogueira eu fiquei juntando os pedaços de plástico que representavam a barraca antes. Enquanto escurecia, os intervalos entre as juntas que eu fazia aumentavam cada vez mais. Tive que colocar a barraca praticamente sem ver nada. Não acertei o tempo. Tive que parar para descansar antes. Agora vou ter que andar na escuridão completa. Tirei da mochila um pedaço de carne cozida e cortei pela metade. Pensei um pouco e cortei a porção da Liana em pedaços menores, do tamanho de uma bala. Ela ficava abrindo a boca e eu colocava um pedaço lá e mordia a minha parte. Liana fazia cara feira e ficava comendo a carne seca e dura por muito tempo. Depois eu dei bebida para ela da garrafinha e bebi também. O fogo terminou de queimar. Somente o que sobrou dele fazia um pouco de luz ainda. - Vai, corre até o mato. Liana olhou com cara desentendida na minha direção. Sem querer eu imaginei o processo. - Entendi - exclamou ela e desapareceu no escuro. Depois tive que limpá-la, mandei ir na barraca e coloquei no saco de dormir. Deitei do lado e me cobri com a jaqueta. Frio e duro. Não peguei o segundo saco de dormir - bobeei. E do meu lado está uma garota quente e acessível. É necessário apenas abrir dois zíperes no saco de dormir para que ele se tornasse um lugar para dois. Eu virei de lado e encostei na Liana. - Tenho medo de você - tentou falar ela. - Se eu estuprar você este medo passará? Dorme. Manhã. Chuva. Nuvens baixas, céu cor-de-chumbo. - ...A sua alma só tem cinzas! Não sobrou nada lá. Minha alma é como um punhado de cinzas... Tudo certo... Mas como esta meleca sabe disto? Menina de merda. Sabe demais. Dezenas de coisas pequenas que se acumularam em dois dias. No começo eu pensei que a gente se tornaria uma equipe ótima e balanceada, se ela tivesse mão. Depois esqueci. Caminho distrai. - Não quero ir com você. Seus pensamentos são negros. Me deixa, eu voltarei para o vilarejo. Eu prefiro que me machuquem a cada noite, mas eles são pessoas vivas! Mas você!... Os meus pensamentos tomaram um novo rumo. Eu a segurei pelos cabelos e puxei até mim. Liana gritou de dor. - Como você sabe os meus pensamentos? Você é telepata? Responda! - Me solta! Me solta!!! - E, em voz baixa - Sim, sou telepata. - Apenas você ou todos os munts? - Todos! Escutou?! Está feliz agora?! E o que você fará com a gente agora? Matará todos? - Chega de gritaria. Não adiantou. Tive que dar umas tapas nela. - Por favor, não diga aos degs - estava chorando Liana agora. - Ninguém gosta de telepatas. Todos os odeiam. Eu sou uma burra. Você ficou sabendo, agora todo mundo ficará. Vão parar de escutar os rangers. A Tarefa não será cumprida.. Tudo culpa minha... Eu estiquei a mão e encostei no cabelo dela. - Para de chorar. Telepatia é problema seu. Não tenho nada a ver com isso. Por que a Veda me odeia? - Não se atreva a pensar mal dela! - pulou Liana. - Ela... Você não sabe como ela é! Corajosa, confiante. A palavra dela é inquebrável! Ela nunca vai desistir! - O que eu perguntei? Liana ficou quieta chorou baixou. - Quem é você? Elite Estelar. Esquadrão da Vida. Demos tudo de melhor para vocês. E nós? Nossos ancestrais foram carregados nos transportadores e mandados pra cá. Se tem Onda, ou não tem Onda, ninguém liga. Vivam como quiserem! E depois - mutação. Você pensa que é legal ser o lixo da evolução? A todo ano nosso número diminui. Temos que corrigir o status genético da população enquanto estamos vivos ainda. Mas o fim será o mesmo - corrigindo ou não, mais umas quatro-cinco gerações e não existiremos mais. Chegará a idade de pedra, barbaridade. Não tem como não pensar nisso. E aí você aparece. Forte, determinado. Todos os nossos problemas não são problemas para você - besteira, coisa fácil. Lembre dos degs pelo menos... - Quem? - Os degeneratas. Camponeses. Aqueles que queriam te atacar em três. Você não teve medo. Nem dó! Você ficou entediado. Você não os considerava humanos. Lembrou da sua mulher. Pisou nele, como em pedras no caminho, e seguiu adiante. Você não me considera uma pessoa também. Eu sou um mecanismo para você. Tipo aqueles que você corrigia na nave. Tem que lavar, limpar, secar onde está vazando. Carregar as baterias. Eu não entendo porque você veio para me salvar. - Dever. Veda salvou a minha vida. Odeio viver devendo alguma coisa. - E quando você corrigir a minha casa, se livrará do dever e continuará o seu caminho? Eu respirei fundo. - Como é que eu vou me desfazer de um dever como este? Não foi você quem me salvou, foi a Veda.. Se eu salvar a vida dela... Ah, tudo isso é besteira. Não tem dever nenhum. Eu que o inventei. Entende, menina, tem que ter algum sentido na vida de qualquer pessoa. O meu morreu lá, no espaço. Agora estou procurando alguma coisa para substituir. Um falso. Dever - uma falsidade boa para o sentido da vida, você não acha? - Apenas cinzas na sua alma. Nada além disso. Eu cortei um pedaço do tecido de borracha que substituía o meu cobertor e coloquei sobre os pés da Liana. Mesmo ela tendo andando descalça desde criança, é necessário usar algum sapato nas montanhas. Nós estávamos subindo para um monte de pedras mais altas nas redondezas. Pulando de uma pedra para outra, eu estava analisando os fatos preguiçosamente. Liana não escondia o estado das coisas. Aqui moravam descendentes da primeira leva da colonização. Chegaram antes da Onda ainda. Não sobreviveu ninguém deles. Mas eles se prepararam bem para viver aqui. Os sistemas biológicos terrestres expulsaram a vida nativa relativamente rápido. Segunda leva da colonização, também conhecida como a última leva de emigração da Terra. Estas pessoas pegaram a sombra da Onda aqui mesmo. Metade corre pelada nas florestas. Desta metade os rangers tomam conta. Cortam bolas de uns, colocam sêmen nas outras. A outra metade - munts. Mantiveram a inteligência, conhecimentos tecnológicos. Passam facas e instruções para rangers-cortadores-de-sacos. Mas não conseguem manter o nível da cultura tecnológica. São condenados, e sabem disto. Terceira onda de colonização - os degs. Degeneratos. Aqueles que partiram em transportes gigantes depois de nós. Liana diz que eles pegaram a mutação no espaço ainda. Encontraram a Onda. E agora evoluem com sucesso em direção aos macacos. Nossos queridos ancestrais biológicos. Odeiam os munts e exploram os peladinhos. Entretanto, em breve alcançarão o nível de inteligência dos mesmos. Pergunta: por que praticamente qualquer mutação joga a humanidade para trás? E se aparece alguma mutação útil, como telepatia, por exemplo, ela vem com tamanho contra-peso que seria melhor que ela não existisse? Pergunta número dois: onde nesta imagem do mundo tem lugar para mim? Olho para a Liana. A menina está cansada. Mas agüenta bem. Todos eles, os munts, agüentam bem. Orgulhosos. "Rato é um passaro orgulhoso. Até você chutar se recusa a voar" - adorava dizer Nadezhda. Ela conhecia milhares de besteiras semelhantes. Atravesso um lugar aberto no topo da montanha e sento, descendo os pés no abismo. Daqui dá para ter uma visão mágica. "Lá tem montanhas altas, lá tem campos infinitos..." - Vulcãozinho adorava campos. E Estrelinha - montanhas... Lá, embaixo, tem jardim de macieiras. Os colonistas da primeira leva eram engraçados. Transformaram o planeta num jardim frutífero. Nenhuma planta inútil - de acordo com ponto de vista do estômago. Inacreditável, mas como será que um pinheiro virou planta que dá frutas? Provavelmente, foi algum engano. Não é um planeta qualquer, é um paraíso para macacos. Será que o verdadeiro motivo do nível intelectual é justamente esse? Liana senta do meu lado. - Você está pensando besteiras. A culpa é da Onda. Onda apenas. - Trabalho transformou macaco em homem. Aqui não precisa trabalhar. Se quiser comer - estica a mão, pega banana. Não tem predadores, nem perigos. Vocês não conseguirão virar seres inteligentes novamente. Silêncio. - Eu nunca comi bananas. A mãe me dizia que elas crescem no equador. Silêncio novamente. - Minha casa está lá - e aponta a direção com pé. Eu olho para o perfil dela. Muito jovem. Por volta de dezessete anos. Nariz erguido, cheio de pintas, boca bonita. Porque ela chateou o ranger? - Ele queria demais. Queria ficar comigo sempre, como os camponeses - diz Liana. - O que é que tem de ruim nisso? - Você não entende. Ele me queria de verdade. Queria que eu desse à luz aos filhos dele. Para que as mãos dele fossem para nós dois, queria fazer tudo por mim... "Quero fazer alguma coisa grande e limpa". "Lave um elefante" - lembro um dos ditados da Nadezhda. - Pela primeira vez vejo uma mulher que não quer casar. E o que você conseguiu com isso? Deu um fora num cara legal, caiu nas mãos de canalhas do vilarejo. - Ele queria meus FILHOS - explica Liana quase chorando. - Tem medo de dar à luz? - Sim. Mas não é esse o problema. Eu daria dez filhos para ele. Mas sou munt. Se eu tiver uma filha, ela não terá mãos. Ser for menino - nascerá morto, ou tem que ser morto de acordo com a lei, entendeu? É difícil controlar os genes ruins masculinos. E quem seria um ranger no lugar dele? - Você explicou isso para ele? - Você está louco? - Todas as mulheres são bobas. Principalmente as inteligentes. O que neste mundo pode fazer um portador de genes de elite? Virar um transportador de sêmen? Andar pelos vilarejos e se procriar em nome do Esquadrão da Vida? - Você seria muito útil - afirma Liana seriamente. A tecnocasa da Liana não parece a da Veda. Aquela está escondida nas rochas, esta está bem na vista. Um castelo pequeno. Metade, entretanto, destruída pela pedras que caíram da montanha. Ou está apenas coberta por elas. As perdas caíram faz muito tempo - já tem grama sobre elas. - Está muito escuro lá dentro - reclama Liana. Eu pego uma bateria solar, abro e coloco na parede. Então ligo um cabo fino com uma ponta nela, e a outra ponta numa lâmpada. - Para onde tenho que ir? Seguindo o cabo como a teia de Ariadna (*****), descemos no corredor escuro. - Esta é a sala de controle - explica Liana. - Todas as máquinas são controladas daqui. O gerador está no andar de baixo. Descemos mais um andar. Embaixo do teto está parado um ciber com seis pernas e quatro braços. Engano - tem apenas cinco pernas. Ele perdeu uma delas em algum lugar. - Minha mãe foi atingida por pedras nas montanhas. O Caramujinho foi machucado pelas pedras. Ele protegeu minha mãe com o corpo dele. - O que aconteceu com o gerador? - Aqui aparece uma luz vermelha. Isso significa que não pode dar partida, alguma coisa não está certa. Eu verifiquei tudo enquanto o Caramujinho tinha bateria ainda. - Tem um mapa do circuito em algum lugar? - No computador - aponta para a parede onde tem uma tela enorme. Técnica primitiva. Telas planas, não tem nem projetores holográficos. Tecnologia decadente. - Tem mapa no papel? - Não. Não tem nem papel nem, esse.. esqueci o nome.. aquele que desenha, não tem também não. - Impressora? - Talvez. Nem sei como isso se chama. - Filho ..... ......! Resumindo, tenho que arrumar spin-gerador de modelo desconhecido sem mapa do circuito ou qualquer outra documentação. Para ligá-lo, entretanto, precisamos de energia também. - Teremos energia - afirma Liana. - Tudo está previsto. Aqui temos um gerador de mão e bateria para a partida. - Gerador de mão??? - Ele é chamado assim. Tem pedais. Você fica sentado, pedalando. Quando a luz vermelha fica verde, pode ligar. - Me mostra. Um gerador de verdade mesmo. Parecido com um aparelho de exercícios. Banco confortável com encosto e pedais. Do lado - um painel com medidores. Voltímetro, amperímetro, carga da bateria. Gerador para aproximadamente um quarto de quilowatt, se pedalar bem. Três horas de diversão - e podem fazer uma tentativa de ligar o spin-gerador. Se não funcionar - mais três horas. Imagino que duas tentativas por dia seja o meu limite. Depois disto eu morro. - Eu posso pedalar - diz Liana. - Boa idéia - eu abro um armário com instrumentos humanos, tiro uma chave de fenda e começo a tirar a tampa do painel de controle do gerador "de mão". - O que você quer fazer? - Achar alguma utilidade para você - já estou tirando a tampa do gabinete. Graças a Deus, pelo menos o computador é padrão. Limpo as pontas dos cabos, ligo o gerador com a bateria do computador através de um diodo, arrancado da parte de alta voltagem do bloco de alimentação. Por precaução ligo o voltímetro. - Senta e começa a pedalar. Se o voltímetro mostrar mais de vinte volts, arrancarei as suas pernas do seu traseiro. Liana, mordendo o lábio de concentração, segue a ordem. Tem que girar os pedais muito devagar. O ponteiro fica tentando o tempo todo ultrapassar o valor limite. - Para! - abro o mecanismo de pedalar e troco de lugar as peças. A grande e a pequena. Agora é possível pedalar oito vezes mais rápido. O voltímetro não ultrapassa o valor. - Procura manter quinze volts. Liana sorri para mim e começa a trabalhar. Por um tempo fico observando o ponteiro, depois ligo o computador. O display na parede muda a cor para azul escuro, número e símbolos de testes automáticos ficam passando nele. Reclamando da vida, a fonte de alimentação e a corrente na rede elétrica, o computador liga, após receber uma ordem minha de não ligar uma besteira como essa, o sistema operacional. Atrás das minhas costas Liana dá um grito de alegria. A tela fica branca, recupera a última sessão de trabalho e mostra o esquema do spin-gerador. Interessante, aparentemente a menina não estava chutando as ações dela na hora de tentar arrumar as coisas. Por mais de três horas fico estudando o modelo. Este modelo foi lançado depois da nossa partida da Terra. Nada de novo, apenas circuitos de auto-diagnóstico foram adicionados e proteção contra idiotas. Para que nenhum macaco pudesse se machucar. - Você desligou as proteções? - Como pode? - Tudo é possível, se usar a cabeça. Somente agora eu percebo que a lâmpada parou de iluminar. O sol se escondeu, e a bateria solar não dá mais energia. A sala é iluminada pela luz do computador. Liana está coberta de gotas de suor. Elas brilham como estrelas pequenas no corpo dela. - Chega. Continuaremos amanhã. Vamos dormir. - E jantar? - Sabe o que Maksim Gorki (******) dizia? "Sempre odiei pessoas que se preocupavam demais em comer". Assim que eu desligo o computador, escuridão completa cobre a sala. Encontro a lâmpada em algumas tentativas, mudo para funcionar a partir da bateria e ligo. A bateria está morta, a luz desaparece praticamente nos nossos olhos. Mal dá tempo de subir e correr pelo corredor até a porta principal. O sol se escondeu, mas o céu no oriente está brilhando com cor azul. Noite maravilhosa. Alimento Liana com uma laranja, tiro o tecido dos pés dela e mando entrar num rio frio que desce das montanhas. Limpo a coitada do suor e depois a seco, enquanto ela treme de frio, com a minha camisa. Ela para de tremer, mas os peitos dela se levantam e ela fica vermelha. - Vá passear antes de dormir - direciono ela para a árvore mais próxima. Não quero cozinhar nada, mas a menina ficou pedalando por três horas e está morta de fome. Faço uma fogueira, limpo a Liana, lavo as mão e tiro o que sobrou de carne da mochila. Cheira mal. Cheira mesmo. Não as mãos. A carne. - Você não tem medo de se envenenar? - O quê? - levanta as sombrancelhas Liana, - A-a... Tenho sim. Mas quero muito comer. Esfria. Embrulho a Liana na minha jaqueta, faço um nó com as mangas como se fosse uma camisa-de-força e começo a pensar. Deixei a minha lata com Tobi. Munts não têm panela nem nada para cozinhar. Mas temos a tampa do gerador. Faço uma tocha de alguns pedaços de madeira e corro para a sala do gerador. No caminho de volta o fogo, obviamente, apaga. Mas já consigo ver a o quadrado mais claro da porta. Jogo a tampa no fogo para queimar a tinta. Nunca vi uma panela quadrada antes. Quadrada e sem suporte para mão. Quando a caixa começa a brilhar com cor vermelha, empurro ela com um pau para o rio. Psshhhh. Limpo rapidamente o interior da panela com areia. Pronto. Coloco carne para cozinhar. Não temos sal. Por que carne frita pode ser comida sem sal sem problemas, e cozida não dá para engolir? - Tem sal. No laboratório químico. Sal - é sódio e cloro, né? - Exatamente, criança. Não vai confundir no escuro? Liana fica chateada e cala-se. Cozinho carne durante muito tempo. Coloco água adicional duas vezes na panela. Considerando que a pressão atmosférica aqui é mais alta, a temperatura de ferver a água deve ser maior também. Algo em torno de cento e cinco graus. - Não tem medo de veneno cozido? Liana brilha com o sorriso dela. Com dois paus tiro a panela do fogo e coloco na areia molhada. Engolindo a saliva, esperamos a sopa esfriar. Depois alimento a Liana e não esqueço de mim também. A sopa ficou muito boa, e o gosto de tinta queimada serve como substituto para o sal. Ou talvez a fome substitui. De qualquer jeito, comemos três litros de sopa e um quilo e meio de carne nós dois. E continuamos com fome. Comemos as laranjas. O gosto delas depois da sopa sem sal é fantástico. - Vamos dormir no observatório - afirma Liana. - É a segunda porta a partir da entrada. Boa idéia. Encontro a segunda porta depois de algumas tentativas, coloco tecido no chão, embrulho a Liana e durmo instantaneamente. Sonho com a Estrelinha. Mesmo dormindo eu lembro que ela não está mais aqui. Acordo com o meu próprio choro através dos dentes grudados. Do lado está chorando Liana. Aparentemente, telepatia não tem somente lados positivos. - Esqueça e dorme. São problemas meus. Você não tem nada a ver com isso. - Bobo... não tenho nada a ver, você que pensa - fica chorando Liana. - Antes você era bom, e agora é mal. - Dorme. Desligo os circuitos de segurança um atrás o outro. Liana fica pedalando, carregando a bateria de partida. O computador está trabalhando a partir do bloco de baterias solares, colocado para fora da casa. A luz vermelha se apaga quando desligo o cabo de controle remoto. Como estou vendo, o problema era trivial. Problema com o cabo. Liana simplesmente não tem experiência em conserto de equipamentos sofisticados. Ligo de volta tudo, menos o cabo do controle remoto e, enquanto a bateria não carrega toda a energia necessária, vou verificar o cabo. Logo encontro o local danificado. Devido à movimentação da terra embaixo da casa, painéis de concreto se mexeram e esmagaram o cabo. Abro o cabo, estudo o lugar danificado e ligo os fios. Fecho a abertura com plástico. O cabo se torna mais grosso. Feio. Muito feio, mas funciona. A bateria já está carregada, mas Liana continua pedalando. Com um movimento preguiçoso aperto o botão de partida. O painel indicador se torna vivo, os ouvidos doem por um momento devido a um zumbido quase inaudível. Cinco segundos depois o gerador entra em modo de operação normal e temos luz na sala. Liana grita de alegria, e depois começa a chorar. Fica rindo e chorando ao mesmo tempo. Chora e ri. Aperto o trigger, desligo o gerador e coloco todas as tampas no lugar. Liana liga o cabo de carga no ciber com os pés com uma facilidade incrível e, quando ele revive, se agacha, começa a falar um monte de besteira, abaixa as lentes dele e encosta a cara no ferro cheio de poeira. - Plantação! - Plantação o quê? Mas ela não está mais aqui. Saiu correndo. Ciber a seguiu. Vou atrás. A seção de plantação está no mesmo estado deprimente que o da Veda. Apenas um reservatório transparente com clorella está em perfeito estado. Na verdade, lá tem uma alga diferente. Mas o nome permaneceu desde os primeiros experimentos e virou nome de todas as algas. Liana fica sentada na frente do painel de controle. No chão na frente dela está o teclado. A menina fica digitando os comandos com os dedões dos pés. Ciber num canto encostou numa tomada e continua carregando a bateria dele. Eu fico olhando nos gráficos no painel. A plantação estava funcionando no estado de conservação e agora Liana está mudando para o modo de funcionamento normal. - Ela não foi desligada? - Aqui tem alimentação própria. A bateria agüenta três meses de funcionamento. - E você não me disse?! A gente ficou sofrendo, pedalando, e tinha energia aqui?! Liana olhou para mim com se estivesse louco. - É a plantação! - E daí? - É sagrado. Se a clorella morrer, a casa termina. Ninguém poderá viver aqui, mesmo se o resto estiver funcionando. Devagar, mas eu começo a entender que a plantação aqui é tão importante quanto o ar numa nave espacial. Sem ela - morte. De fome. Está cheio de jardins com frutas em volta, mas não para os munts. Quantas maçãs é possível pegar das árvores com a boca? - Exatamente - confirma Liana. - Minha mãe me dizia que é que nem no oceano. Está cheio de água em volta, mas não pode beber. As pessoas morrem de sede. É assim mesmo? - Sim. - Eu nunca vi o oceano. Veda me contava, mas não é a mesma coisa. A água é salgada mesmo? - A água é amarga, não salgada. Levanto a tampa e pego a camada superior da bio-massa. As slgas já começaram a apodrecer, e não é bom contaminar o sintetizador com produtos não comestíveis. Liana, alegre, fica dando dicas, levanta nos dedos dos pés e até fica pulando de agitação. Até o Caramujinho, pelo que parece, fica meio que dançando sobre os cinco pés dele. - Finalmente comeremos comida de gente! Fico olhando com cara de dúvida para a geléia verde que fica saindo do sintetizador. - Você não entende nada de comida - me explica Liana, brilhando de alegria. - Isso é comida de verdade das pessoas civilizadas. Aqueles pedaços de carne, duros como uma árvore, que você usava para me alimentar - é o começo da civilização. Barbaridade! Matar animais para comer - não consigo nem pensar nisso! Até a minha morte não vou esquecer que comi carne crua. - Quando que você comeu carne crua? - No primeiro dia. Foi você que me alimentou. Por que, por acaso não estava crua? Mesmo assim foi horrível! Só com muita fome para comer aquilo! Não posso não concordar com essa afirmação, e Liana fica sorrindo com cara de vencedora. No dia seguinte me dou ao luxo de permanecer na cama até o meio-dia. Ainda mais porque o tempo lá fora ajuda. Escuro e chovendo. Até parece que estou escutando as pedras batendo nos vidros. Se bem que o vidro daqui é blindado. Facilmente segurará aquelas pedras que destruíram o lado oposto da casa. Sensação estranha. Não tenho pressa para nada. Antes da aterrissagem trabalhava como Papai Carlo (*******). Depois de aterrissar não fiquei um dia em paz. Andando, me apressando... E agora ninguém precisa mais de mim. Droga! Ninguém precisa mesmo de mim. Os lobos estão alimentados, as ovelhas estão intactas e glória eterna para o pastor... Este mundo tem os problemas dele. Levanto, lavo o rosto rapidamente, fico pulando pelo quarto, aquecendo os músculos com exercícios de arte marcial e vou à procura da Liana. Encontro ela na sala técnica. - D, d, d, e, e. Segura! N, n, n, l, l, n. Esquerdo! D, d, e, segura! - escuto uma seqüência de comandos. Em cima da mesa está um mecanismo semi-desmontado. Liana com voz e pés está controlando quatro manipuladores de uma vez só. Os dedos dos pés estão encaixados nas luvas sensoriais - ou melhor, senso-sapatilhas; e com muita facilidade está controlando dois manipuladores que lembram mãos de aço com cinco dedos. Outros dois manipuladores, que seguram chaves de fenda, são controlados por voz. - Oi. Que você tem por aqui? Liana responde com um sorriso brilhante. - Bom dia, dorminhoco! Não consigo tirar o parafuso esquerdo de jeito nenhum. Enferrujou. - Me deixa tentar - jogo querosene sobre o parafuso, coloco a chave e viro bruscamente. - Pronto. - Ignat, toda a comunidade agradece a você pela salvação minha e da tecnocasa - diz Liana emocionadamente. - Na rede só se fala sobre você! - De onde todo mundo me conhece? - Da Veda. Eu entrei na rede de manhã - só tem alegria! Recebi tantos parabéns! Todo mundo está te agradecendo! E estão agradecendo a Veda também! Eu não te disse que ela pode tudo? Só basta querer. Veda pode tudo... Pensamento engraçado. E eu estou me tornando popular neste mundo. Para que isso para mim? - Veda disse alguma coisa sobre mim? Liana fica vermelha. - Disse para eu não ter medo de você. - Entendo. Descansa por uns trinta minutos, vai faltar luz por um tempo. Vou arrumar a sala do gerador. Fico arrumando a sala do gerador. Coloca as tampas do gerador nos lugares devidos, conserto a fonte de alimentação do computador e começo a manutenção regular dos equipamentos da tecnocasa. O log dos erros é tão grande que nem li inteiro. Mandei o computador organizar os problemas de acordo com a prioridade e comecei com o primeiro da lista. Na nave durante cinco anos biológicos fiquei consertando as coisas, por isso já conheço o trabalho. Os equipamentos são um pouco diferentes. E bem abandonados. Já fazia uns duzentos anos que não tinha manutenção por ali. Mas manutenção continua sendo manutenção em qualquer lugar, até na África. Liana não desgruda de mim, com boca aberta fica olhando as minhas mãos e fazendo milhares de perguntas. Eu nunca tive um aprendiz tão prestativo. Eu não a respondo falando. Ela lê a resposta nos meus pensamentos. Não sei como ela as entende, mas aparentemente, ela entende. O tempo todo sinto falta de peças para substituição. Não tem quase nada na sala dos técnicos. Liana não sabe onde arrumar peças. Pergunto para o computador. - No depósito - responde ele. - O depósito está naquele canto - explica Liana. - Que canto? - Aquele canto que as pedras destruíram. Não há como chegar lá. Coloco na tela um modelo tridimensional da tecnocasa, depois levanto a torre superior e fico observando o estado atual. A parte oposta realmente foi obstruída significativamente. Mas as paredes aqui são resistentes. Tenho quase certeza que elas agüentaram. Mas tentar abrir a entrada - isso demoraria anos. - A queda das pedras aconteceu nos tempos da minha avó - conta Liana. - Eu nem tinha nascido ainda naquela época. E minha mãe era muito nova também. Mais nova do que eu agora. - Você entende que sem o depósito não conseguiremos consertar tudo por aqui? - Sim - fica triste ela. - Pensa como entrar lá. - Não tem jeito... A avó ficou pensando, a mãe também. Não tem como entrar lá. Fico estudando a planta novamente no computador. - Tudo bem. A parede da frente e o portão foi obstruído. E a parede de trás? - A avó tentou. - E? - "E" o que? O que você está pensando agora? Como entrar no depósito? Não está claro o que aconteceu? É necessário bater nesta parede durante um ano inteiro. E a avó tinha um Caramujinho apenas. Ele deve ser cuidado. Desço para baixo e fico seguindo a planta com o dedo. - Que túnel é esse? - Túnel de cabos. - E esta caixa? - Ventilação. - Se fizer um buraco aqui, eu posso entrar no túnel na ventilação? - E daí? Você só poderá se arrastar por lá. E não dá para virar. O Caramujinho não vai entrar lá. - Eu entrarei lá. - Não sairá depois. É suicídio na certa. Em algumas coisas a Liana tem razão. Para munt é um suicídio certo. Se arrastar como um verme por oitenta metros num túnel, e tem grade lá... Como vou tirar? Com os dentes? Depois - seis metros para baixo. O depósito tem paredes altas... Por um bom tempo fico batendo nas paredes do túnel dos cabos. Depois alguns golpes com machado - e o caminho até o túnel de ventilação está aberto. Pego as ferramentas, coloco uma faixa na cabeça com a melhor lâmpada que consegui encontrar e entro na ventilação. Só tem lugar para se arrastar aqui, arrastar para frente. Para voltar vai ser muito complicado. Liana fica chorando atrás de mim. Ela merece levar uns tapas qualquer hora... Depois da primeira curva já fico sem alguns instrumentos. Eu consigo fazer a curva, mas eles não. - Espero que você seja a maior das minhas perdas - canto um soneto de Shakespeare para mim, pensando se vou conseguir fazer esta curva para voltar. Duvido... Conto três desvios para a direita, após o quarto quebro a grade de ventilação e ilumino a sala com a luz da lâmpada. É alguma espécie de garagem. Cinco metros até o chão. Prendo uma corda na borda do túnel de ventilação e desço para baixo. Clico no interruptor na parede. Surpreendentemente, a luz acende. Parece que os cabos de força ainda funcionam. Sorte. "Somos sortudos" - dizia Bonus. Enquanto estava vivo. Por um bom tempo fico andando pela garagem. Aqui tem de TUDO. Duas gerações de munts economizaram tudo, tinham medo de jogar fora um pedaço de plástico, pedaço de metal, parafuso enferrujado. E atrás da parede - tudo o que você poderia imaginar... ...Abro a saída de um tanque de oxigênio. O fogo muda de amarelo para azul. De acordo com o manual, mais de dois mil graus. Abaixo a proteção do colete protetor e ligo o encaixe elétrico. As luzes do teto ficam visivelmente mais escuras, mas a temperatura sobe para cinco mil graus. Quase que nem o sol. Lá a temperatura é de seis mil. O concreto se derrete sob o fogo como um pedaço de gelo sob água fervente. Mas logo eu preciso desligar o fogo. Senão me queimarei vivo. Mesmo com o colete protetor. Ou os tanques de gás explodirão. Por precaução afasto eles. Eu fiz na parede um buraco com a profundidade de um braço. Aproximadamente setenta centímetros. Quanto falta? Na lua as paredes são de dois metros de espessura. Na Terra eu vi com os meus próprios olhos um pedaço da parede de um castelo com mais de três metros de espessura. Não tenho oxigênio para três metros. O ar volta a ser refrescante, a cratera e o concreto líquido no chão não brilham mais de calor. Ligo o fogo de novo. Agora eu faço um buraco pequeno. Novo problema - concreto evapora e fica jogando gotas derretidas. "Se o seu spin-gerador está com defeito, se afaste para não sujar o terno com metal derretido". Você pensou que isso era apenas uma brincadeira, Vulcãozinho? Eu também pensei. Sucesso! A espessura da parede é de aproximadamente um metro. Falta fazer uma espécie de porta bonitinha. Isso nós podemos. Para isso três tanques é mais do que suficiente. O concreto ainda está quente, por isso seguro a Liana nas mão e levo para dentro. O Caramujinho se confunde por um segundo, analisa com olho infra-vermelho a parte quente do chão. Mas a dona está se afastando. Se decidindo, ele corre atrás dela com determinação. Enquanto Liana, abalada, fica andando entre as estantes, eu coloco na sacola, presa no cotovelo, as partes que preciso. Tem mesmo de tudo por aqui. - Liana! Estou indo! Silêncio. - Liana!! Não posso fazer nada. Vou à procura dela. Liana está ajoelhada na frente de uma fileira de companheiros dos munts - cibers com seis pés parados como numa parada. Ela é bem bonita olhando pelas costas. Ultrapasso ela e agacho na sua frente. - Então? O que aconteceu? A cara dela lembra uma máscara. Somente lágrimas estão escorrendo pela cara e ficam caindo sobre o concreto. - O que aconteceu? A cara se contorce. - A-a-a-vuu-u! - Não há nada de humano neste grito. Seguro ela pelas mãos e vou correndo até o setor médico. E apenas no caminho eu entendo que é apenas mais uma histeria. - Eles são muitos! Muitos! Você entende, eles são muitos! Mãe, mãezinha, me perdoa! Coloco ela na cama, cubro com um cobertor, faço engolir uma cápsula com tranqüilizante. A cara da menina volta a ser uma máscara. - Você viu, eles são muitos... - Eles quem? - Caramujinhos. - No mínimo uma dúzia. Liana fica deitada nas costas como uma morta, apenas lágrimas continuam escorrendo dos olhos, ficam escorrendo sobre as orelhas e caem no travesseiro. Procuro na caixinha de pronto socorro e faço uma injeção nela para deixar dormindo. Espero ela dormir. - Caramujinho, me segue. O ciber fica se mexendo indeciso, sem sair do lugar, mas não segue a ordem. Seguro o manipulador dele e vou arrastando como uma criança. Agora ele não se atreve a resistir mais. Por algum motivo eu sei: se eu o soltar, ele correrá até a dona. Por isso, assim que chego no depósito, eu abro o painel de controle dele e desligo a parte responsável pelos movimentos dele. Inicio o processo de carregamento da bateria de dois irmãos dele. E, para economizar tempo, inicio o procedimento padrão de verificação técnica em ambos. Enquanto os cibers ficam testando os servo-motores parados há um bom tempo e ficam mexendo os manipuladores, vou para o ar livre. A grama daqui é muito linda, cor de esmeralda... Minha tarefa para as próximas duas semanas está decidida. Manutenção. Manutenção como sempre, como na nave. Arrumo a tecnocasa. E depois? Me torno um ranger? Fico estragando as meninas, cortando os sacos dos homens? Para quê? Para cumprir o que eu prometi para a Estrelinha? Homens não entravam nessa promessa. Boa pergunta - por quê? Devia começar com isso. Eu sei porque os rangers ficam castrando os humanos, companheiros do planeta deles? O que eu sei sobre este planeta afinal? Antes de tudo, tenho que entender a situação. Se existem tecnocasas devem existir as pessoas que as construíram. Cidades, usinas - deve ter de tudo. É possível fabricar um ciber num laboratório. Mas aqui há dezenas deles. Idênticos. A Veda tem um que é igual também. Existe alguma usina em algum lugar por aqui. E no mínimo um vilarejo de engenheiros, pessoas inteligentes e bem conceituadas. Danem-se os bárbaros selvagens, eu vou procurar a civilização. Volto para o depósito. Meus cibers estão consertando uns aos outros. Muito bem, rapazes. Espero eles terminarem e copio a experiência da vida do Caramujinho para os outros. Coloco um dos novos para ser conservado novamente. Penso um pouco, tiro o capacete riscado do Caramujinho e coloco em um dos novos. Liana obviamente não vai querer se separar do manco ciber dela. Vou falar que arrumei. Droga! Ela é telepata... Bem, é problema dela. O que foi feito foi feito. Coloco o Caramujinho para ser conservado e mando o novinho para a menina. - Ignat, me perdoa. Isso não acontecerá novamente, te dou a minha palavra. Eu tenho vergonha daquilo que aconteceu. - Esqueça. - Não. Tenho que explicar... Você está com a impressão errada de mim. Eu tenho que explicar... É tão importante - aquilo que você fez. E você deve saber, o quanto canalha eu fui e como era a minha mãe - Liana estava falando extremamente calmamente. Calma demais. Ela estava à beira de um ataque. - Chore os seus problemas. Mas não espere compaixão nenhuma. Ok? - Eu não quero compaixão sua. Só tenta entender. Não é por mim, é por minha mãe. Pela memória dela. Ela se chamava Corina. Sobrou apenas um Caramujinho para ela da avó. E quando eu nasci, ele ficou compartilhado entre nós. Entende? Nós sempre precisávamos estar juntas. Até os treze anos tudo correu bem, mas depois... Depois eu quis liberdade. Eu sabia que mais cedo ou tarde o Caramujinho se tornaria meu. E eu fiquei com ciúme do Caramujinho e da minha mãe. E me amaldiçoava, mas não podia fazer nada. Se no lugar da mãe fosse o Tobi, tudo daria certo. Mas eu e a minha mãe somos telepatas... Ela sabia tudo. No começo eu tentei escapar para as montanhas com o Tobi. Mas ele... Ele queria colocar sêmen em mim. Então minha mãe me entupiu de estudos. Durante todos os dias ela me mandava estudar tudo o que tinha na tecnocasa. Todos os equipamentos, todos os mecanismos - até o último parafuso. Minha mãe não sabia muito da parte elétrica. Ela não entendia tudo, mas ficava na frente do computador todas as noites, e depois me explicava. Dois anos de estudo constante - você consegue imaginar isso? - Consigo. Eu tive cinco anos. - Minha mãe tentava me educar sobre tudo o que ela conhecia, e quando ela achou que ensinou tudo... Você já foi até o rio? - Ainda não. - Tem uma praia de areia lá. Minha mãe a chamava da praia de ouro. Ela gostava de nadar lá. E eu acabei não aprendendo a nadar. Ela sempre queria descobrir aonde que o rio levava. E quando ela achou que eu já tinha decorado tudo o que ela sabia... A gente tinha apenas um Caramujinho para nós duas. Mamãe entrou no rio e nadou na correnteza. E o Caramujinho passou a ser meu. Você entende, ela fez isso somente para que eu tivesse o meu próprio Caramujinho. Ela tinha acabado de fazer trinta e cinco anos. E tem muitos caramujinhos no depósito. Eles estão enfileirados na parede. Quando eu vi... - Entendo. Valeu a pena ficar pulando como uma pulga pela galáxia durante quinhentos anos para achar este planeta de merda... - eu não pronunciei isso. Mas Liana escutou. Telepata. - Você não entendeu TUDO. Minha filha terá um Caramujinho DELA. Desde o começo dela. Poderemos viver juntas por muito-muito tempo. Graças a você. "Eles viveram felizes, e depois por muito-muito tempo" - gostava de falar Vulcãozinho. Arrumei o sintetizador de comida. Só não consegui arrumar o bloco de corantes. Carne violeta, ou carne de cor verde clara não atraía muito pela aparência. Vulcãozinho sempre dizia que pintor e eu são coisas incompatíveis. E Bonus sempre gritava que "esta idéia é genial". E Estrelinha ficava brava com eles e falava que não entendiam nada de música, não sabiam diferenciar ré-bemol do dó-sustenido. Por isso eu desencanei do bloco de corantes e deixei tudo do jeito que estava. Lingüiça, hambúrguer, carne de panela e carne frita saem brilhando com todas as tonalidades de verde, do verde escuro de pântano até cor de esmeralda. Não consegui programar o Caramujinho para usar faca e garfo e por isso acabo tendo que sempre contar a carne em pedaços minúsculos antes de comer. Para Liana e para mim. A garota também começou a trabalhar. Limpa todas as salas, pintas as paredes com cores brilhantes. Ela economizava a tinta, plástico, bateria do Caramujinho antes e agora parece estar chocada pelo excesso de tudo. Fica voando pela casa alegre, determinada, suja de poeira e tinta. Como é possível se sujar desta maneira sem mãos, eu não entendo. O Caramujinho a segue como uma sombra. Sujo da mesma maneira. Ora com aspirador de pó, ora com jogador de tinta automático. O arquivo de log dos equipamentos a serem consertados se torna cada vez mais curto. Que nem na nave - saio da anabiose, três ou quatro semanas de trabalho infernal, me sujo até os ouvidos de sujeira e óleo, uma semana de descanso - e anabiose de novo. Dez anos perdidos. Um ano biológico para cem anos reais. Manutenção... Manutenção apenas. Será que é tão difícil imaginar que estou na nave? Fico verificando o sistema elétrico. Estrelinha fica verificando os sistemas de anabiose. Posso chamá-la quando quiser. Ela perguntará se não tem problema das mãos dela estarem sujas. Manutenção de equipamentos elétricos - uma bolsa aberta com testador universal, mãos sujos de poeira até os joelhos. Tiro o testador elétrico, sopro a poeira, limpo os contatos, coloco no encaixe do testador. Noventa por cento de todos os problemas: um mau-contato. Tirou e recolocou e tudo funciona. Conserto de mecanismos - mãos sujas até os cotovelos de óleo. Manutenção... Quantas eu fiz nos quinhentos anos de vôo... Ou durante cinco anos biológicos... Manutenção, semana de descanso, dez anos de anabiose. Manutenção, descanso, anabiose. Ou despertar de emergência - isso quando o nível da Onda estava subindo. Nesse caso - pressa. Manutenção apenas das coisas mais necessárias, escolha da direção do salto espacial, lançamento de sondas-escaneadoras... Quando as sondas acabaram, nós pulávamos cegamente. No chute. Às vezes quatro, ou até cinco vezes, até encontrar espaço calmo. Mas a Onda naquele tempo já estava diminuindo. É apenas manutenção de rotina - tento eu me convencer. À noite voltarei pra minha cabine. Pra nossa cabine. A Estrelinha chegará, sorrirá para mim cansada e tudo estará bem. É uma manutenção de rotina qualquer. Mãos sujas de óleo, mãos sujas de poeira... Vazamento de líquido hidráulico, amortecedor estourado, contato oxidado. Tela verde do testador: "Contato intacto", "Contato desconhecido", amortecedores, pneumática, óleo estragado, parafusos arrebentados, dedos sujos de sangue... Manutenção qualquer. Em algum lugar atrás da parede está trabalhando o Bonus. E as meninas estão recuperando os sistemas de manutenção da vida. Será que é tão difícil imaginar isso? Acordo porque alguém entra na minha cama. - Estrel... - Sou eu, Liana. Liana. É claro. Quem mais podia ser? Estrelinha morreu. Morreu faz tempo. Ainda lá, no espaço. Meu Deus, por que, por que ela e não eu? - Ignat, eu quero substituir a Estrelinha para você. Eu serei igual a ela. É só você pensar que eu faço de tudo. Eu vou me empenhar muito. E você poderá colocar seu sêmen em mim, da mesma maneira que você fazia com ela. Sempre-sempre, quando você quiser. - Minha época de acasalamento se passou - digo eu indiferentemente. É fácil lidar com telepatas. Não é necessário mentir. Posso continuar sendo eu mesmo. O importante é não tentar se passar por algum outro. E para isso, antes de tudo, a alma deve morrer. É só deixar a alma morrer que você está pronto para passar para o próximo nível da evolução. Engraçado, não é? - Doutor, eu sou um filho da puta bem grande, e você sabe disto - falava eu para o psicólogo antes da decolagem. - Mas me responde sinceramente. Será que na Terra inteira não tinha nenhum candidato melhor? - Você tem uma saúde boa e genes ideais. E ser filho da puta durante o vôo você não poderá - simplesmente não terá com quem ser - respondeu ele. - A equipe foi selecionada levando em consideração as suas frescuras. A compatibilidade psicológica é muito alta. Quando vocês começarem a se procriar, a sua tribo precisará de um líder. Tribo na idade das pedras precisa de um líder. Você se encaixa bem para este papel. Por isso vá com Ceus. Ou com o diabo - a escolha é sua. Seja você mesmo e não fique entupindo a cabeça de besteiras. O doutor não acreditava que a gente conseguiria manter o nível civilizado. Eu também não estava nem aí com isso. Isso é problema dos descendentes. Posso considerar os munts descendentes? Tenho que ir para cidade. Tenho que ir para cidade, para procurar respostas... - Você tem um coração morto, alma gelada, mas mãos boas e grandes. Não me deixa, por favor - implora Liana. "Você tem um coração bom e grande" - disse uma vez a Estrelinha. "Eu sei. Eu o segurei nas mãos". Ela segurou o meu coração nas suas mão mesmo. Naquela vez eu devia ser o primeiro a sair da anabiose, mas alguma coisa falhou. Não conseguindo me acordar, o computador começou a acordar o próximo. As meninas conseguiram tempo para me trazer de volta para este mundo. Naquela época o regenerador biológico ainda funcionava. Não tenho nem cicatrizes no peito. Setenta anos depois - sete manutenções depois - o regenerador parou de funcionar para sempre. - Você quer sair daqui. Não vá, por favor. Ah, não falei a coisa certa. Não me escute, esqueça. Vá, se você acha necessário, mas volta, pode ser? Eu vou esperar você. Vou esperar para sempre-sempre. Eu quero que você coloque sêmen em mim. Só em mim. Mas, se você quiser as peladinhas também, não terei nada contra. Nada nada contra, eu prometo. Ignat, não fica bravo comigo, mas não dá para viver no passado o tempo todo. - Você pelo menos conhece estas palavras - amor e sexo? Liana fica escutando os meus pensamentos por um bom tempo. - Agora sim. Eu amo você. - Dorme. - Você voltará? Fecho a mochila, verifico a carga do stunner. - Não sei. - Posso pedir uma coisa? Não para mim, para a Veda. - Diga. - Tem muito poucos rangers no nosso setor. Tem que educar novos. Traz um menino dos degs para a Veda. Mas no máximo com cinco anos. - Onde vou achar ele? - Na vila. - Quem dará um menino para mim? - Sequestra... Ignat, para de ficar triste. Meu Deus, não seja um idealista tão tímido! Você não é o Tobi. Praticamente todos os rangers foram criados a partir de crianças roubadas. Pessoas como o Tobi são exceções. Tem que matar por isso - pensei eu, mas a Liana escutou. - Por que você fica como uma criança assim? Sim, nóss roubamos crianças e fazemos rangers deles. Eu também não gosto disto, e daí? Temos que salvar a humanidade como uma espécie. A gente daria à luz para todos os rangers, se pudéssemos. - Você acha que isso é uma desculpa? - Eu não acho nada. Aqui tudo é simples, como dois mais dois. Mais uns duzentos anos se passarão e não sobrará nenhuma tecnocasa por aqui. Nós, munts, seremos extintos. Crianças virarão salvagens de verdade, esquecerão a língua. Peladinhos já são salvagens. Os únicos humanos serão os descendentes dos rangers. Para isso que nós, munts, vivemos, para isto o mundo está girando. Se você conhece alguma saída melhor, diga. Nós não sabemos. Mal andei uns dez quilômetros e o Tobi apareceu de algum lugar. - Estou tão feliz que você ajudou a Liana. Eu não conseguiria. Corina tentou me ensinar a mexer com os equipamentos, mas não consegui entender nada. - Como você ficou sabendo que arrumei o gerador? - Eu vi luz nas janelas. Estive aqui por perto. Vai que vocês precisavam da minha ajuda? Logo o vazio costumeiro voltou a dominar a minha mente. Tobi falava sem parar. Mas agora eu precisava pensar nos meus planos. Ele não deixava eu me concentrar. Eu parei de repente e o ranger quase caiu, tropeçando em mim. - Tobi, você ama a Liana? - Amar - que palavra é essa? Eu não o entendo. Você o diz de forma errada. Eu amo as ameixas. Não dá para falar assim sobre as pessoas. - Mas você queria colocar sêmen nela? - Sim-sim! Mas não que nem com as peladinhas. Para que ela também... Para que eu e ela. E nós dois... Mas ela não quer... - Vá - toma ela. Se ela não quiser - toma à força. Ela vai te perdoar. Ela te quer, mas ela não entende isso. Mas lembre-se do mais importante: nunca tenha pena de munt. Entende? Eles odeiam quando alguém tem pena deles. E não espere ter filhos com a Liana. - Eu sei. Veda me falou. A gente teria uma filha sem mão. Eu não sabia antes, mas depois a Veda me contou. Mas e se a Liana não quiser? - Seja um ranger, droga! Tudo dará certo entre vocês dois, acredite em mim. No começo ela ficará brava, mas depois te perdoará por tudo. Vá até ela. Eu estava parado, olhando enquanto o Tobi, olhando às vezes para trás com incerteza, ia em direção à tecnocasa. - E nunca tenha pena dela, escutou?! Ele me alcançou dez dias depois. Limpo, com cabelo arrumado, com barba cortada. E andou junto, silencioso. - Tudo certo? - perguntei eu. - A casa ficou tão nova! Paredes limpas, brilhantes, alegres. Eu nunca tinha visto ela assim - respondeu Tobi deprimido. - Liana disse que será assim para sempre agora. - O que aconteceu entre vocês? - Com a gente está tudo bem. Ela me obedeceu. Agora eu sempre posso ir na casa dela e colocar sêmen nela. Ela até disse assim: "Minhas portas estão sempre abertas para você". Mas... Ignat, isso não foi certo. Ela amava você e agora ela te odeia. Você não devia ter deixado a tecnocasa. E você não devia ter me enviado. Ela disse que não me ama, mas obedecerá. Se eu tivesse chegado antes dela começar a amar você... E agora ela te odeia. Isso não está certo. Você a ajudou e, em troca de ajuda, legou um pedaço da alma dela. Isso é mal. Você tinha que ajudar de uma maneira que não doesse nada depois, é o que eu penso. - Você me alcançou só para falar isso? - Não. A Liana pediu para eu te mostrar o caminho até a cidade. E para transmitir que ela te odeia. - Ama - odeia... Tudo isso é besteira. Agora ela vai te amar. - Não. Ela tem amizade comigo. Ela amava você. Eu xinguei. Em voz alta. Durante quatro dias Tobi andou do meu lado quieto. Tobi quieto - Eu ficava um pouco mal por isso. Ele fecha a cara e fica pensando. Olha para mim com rabo de olho. No quinto dia ele explodiu. - Você é uma pessoa sem graça, Ignat. Anda e fica olhando apenas embaixo dos pés. Olha só como é bonito em volta! E você anda, se apressa. E eu vou com você. Também me tornarei sem graça. Me diga, para onde você está indo? - Para a cidade. - E para que você está indo para a cidade? - Você não entenderá... Tobi se chateou, abaixou a cara e ficou quieto. - Eu entendo que não posso entender tudo. Mas Corina nunca me falava que eu não ia entender - disse ele uma hora depois. - Ela falava... - Não vejo sentido nisso. Você nasceu aqui, o seu olho já está acostumado. Você não enxerga nada de estranho. E eu, com olhar novo, quero entender. - Pergunta para a Fiesta. Ela é a mais inteligente, ela sabe tudo. E mora perto da cidade. Vamos para a Fiesta. - Primeiro pra cidade. - Você sempre é assim. Como um munt - se fixa em alguma coisa que você pensa e não desiste de jeito nenhum! Todos os munts são tão ocupados que não enxergam a beleza. Todos fazem alguma coisa, ficam chorando... E querem que todos fiquem assim. Olham um peladinho - quase choram porque eles ficam vivendo por si mesmos. Eles sempre precisam que ele faça alguma coisa. Não entendo isso. - O trabalho transformou macaco em humano. "Para o transformar num cavalo depois" - completaria Bonus. - Eles querem que as mãos deles cresçam novamente? Eu não respondi. Tobi fechou a cara novamente. - E você, viu macacos? - não resistiu ele um minuto depois. - Fiesta diz que daqui a pouco nós nos tornaremos macacos novamente. E nunca vi. Vi peladinhos, vi degs, mas não vi macacos. Munts dizem que não tem nenhum macaco no planeta. E se eles não existem, como a Fiesta sabe deles? Onde ela encontrou as fotografias deles, se eles não estão por aqui? Vamos até ela e você pergunta. E depois explica para mim. Por que estamos andando-andando até a cidade? Não tem nada lá. Nem degs, nem peladinhos. O que eu vou fazer lá? Sou um ranger, tenho trabalho a fazer. - Vamos até a Fiesta - concordei. Pacote informativo 4 Motor gravitacional de salto não fere muitas leis da mecânica clássica. Dois corpos no espaço estavam longe um do outro e de repente ficaram mais perto. Para isso, é necessária energia. Muita energia. A nave anda alguns anos-luz, A estrela anda alguns metros. As coordenadas dos centros de massa do sistema e os vetores de velocidades permanecem inalterados. Até a invenção dos spin-geradores existiam poucas naves gravi-saltantes, as naves eram enormes e cada vôo um evento acompanhado pelo mundo inteiro. Spin-geradores foram inventados depois do descobrimento da Onda. A comunicação gravitacional também foi inventada depois. Durante muito tempo consideraram a hipótese de criação artificial dos aglomerados das estrelas na galáxia. Será que transportes contínuos dentro de uma civilização estelar fazem as estrelas se aproximarem? Ainda não existem provas nem a favor, nem contra esta teoria. A Onda foi descoberta no auge dos projetos de buscas de civilizações alienígenas. Centenas de expedições eram projetadas. Tudo isso está no passado. Dificilmente estaremos preocupados com problemas das civilizações que se foram durante o próximo milênio após a Onda. ----------------------- A pista de decolagem foi feita com capricho. A partir de rochas derretidas. Para falar a verdade, em alguns lugares as rochas trincaram, mas uma equipe de manutenção conseguiria arrumar todos os defeitos em um par de dias. Ninguém usou a pista durante os últimos cem anos aproximadamente. Vento jogou poeira, na poeira cresceu grama e, em alguns lugares, línguas verdes cobriam as pedras por completo. A Fiesta escolheu um lugar bonito para colocar a tecnocasa. Subindo na torre de vidro do controlador de vôos, é possível ver campos para todos os lados. Nadezhda teria gostado daqui. Fiesta saiu para nos encontrar. Sorriu para mim quentemente, encostou os lábios no Tobi com carinho da mãe. Ela era uns dez-quinze anos mais velha do que eu. Eu percebi alguma coisa conhecida na expressão do rosto dela. Depois eu entendi. É a expressão de um animal ferido mortalmente que eu via na cara do Bonus após a morte das meninas. Ou no espelho. Ciber, o companheiro dos munts, refletia luzes para todos os lados com o corpo liso dele. Posso apostar que há uma semana atrás ele parecia um ferro velho. O nome dele era Flatter. Peculiaridades locais, pelo jeito. A mesa de comida chamava a atenção. Além da geléia e água quente tinha um prato quadrado, feito de plástico, com frutas cortadas em forma de cubos. Sem duvida, minha influência. Eu alimentava a Liana com pedaços de maçãs. Progresso... Se bem que as frutas daqui foram cortadas sem levar em conta sementes e fibras presentes na fruta. Ou por um raio laser, ou por uma faca de diamante. Fiesta queria muito conversar comigo em privacidade. Por isso a gente foi fazer uma excursão pelo aeroporto após o almoço. Mas o Tobi fez questão de nos seguir. Fiquei impressionado com o hangar. Quatro dúzias de helicópteros pesados estavam divididas em três fileiras, como em uma parada. Mas não fiquei impressionado por causa disto. Quem nunca tinha visto helicópteros? Fiquei surpreso pelo fato de que as fontes de energia deles era spin-geradores compactos. Milagres da miniaturização. No máximo doze-quinze toneladas de peso cada um. No nosso tempo não se sabia fazer isso. No segundo hangar luz fraca das janelas perto do teto iluminavam flyers de transporte. Eu olhei dentro de um deles, pensando como eu poderia fazer para ficar a só com Fiesta. Se bem que isso é problema dela. - Tobi, arruma, fazendo favor, uma sala para o Ignat - pediu Fiesta. - Mas... Qual? - A do lado da sua. Suspirando alguma coisa em voz baixa, Tobi saiu. Fiesta seguiu-o com os olhos e depois virou para mim bruscamente. O sorriso desapareceu do rosto dela. Olhos cor de cinza brilharam como aço. Agora a cara dela virou uma cara de juiz. Eu dei risada. - Eu votei em você. Pena, porque eu errei - ela ficou quieta, aparentemente esperando uma reação minha. Inútil. Eu estava pensando preguiçosamente se eu conseguiria dar partida no caminhão que eu vi no aeroporto e chegar até a cidade. - O Conselho discutiu você - continuou Fiesta. - Foi permitido para a Liana ter um filho com Tobi. Muitos eram contra, mas Veda, Liana e eu defendemos a sua posição. Você pode ser útil para a comunidade e ganhou o direito de voz. Hoje eu teria votado contra. Eu mexi os ombros. Jogos de crianças, dos munts, não me interessavam. - Senta - ordenou Fiesta. Não gostei nem um pouco do tom de voz dela. Nem do stunner potente que o ciber dela apontou na minha direção. Olhos de aço, voz de aço, um bicho com seis pés de aço com stunner - isso parecia meio repetitivo. Mas uma sombra de curiosidade se despertou dentro de mim, curiosidade de saber como tudo isso iria acabar. Eu sentei num degrau de concreto perto da parede do hangar e Fiesta sentou do meu lado. - Você não entende o quanto a situação está complicada - pronunciou ela. - Munts não podem ter filhos dos degs. Tobi é deg pela metade. A influência negativa dos genes desconstrutivos do Tobi irá prejudicar... - Desconstrutivos.. Vocês inventaram essa palavra? Diz diretamente: a filha da Liana nasceria uma idiota, é isso? Fiesta respirou fundo. - A filha da Liana não será uma telepata. Ignat, você mandou Tobi para a Liana apenas para se desfazer das conversas dele. Uma boba jovem viu um homem de verdade pela primeira vez na vida, se apaixonou por ele com toda a força da juventude e você mandou Tobi até ela. Você enganou o amor dela, destruiu a felicidade, apenas para não escutar as conversas do Tobi. Tudo bem, não sobrou nada na sua alma. Mas por que você faz questão de preencher o espaço de alma com sujeira e lixo? - Ela já me perdoou. Ela votou em meu favor. - Ela votou em seu favor somente porque ela é munt. Para munt trabalho é mais importante do que sentimentos pessoais. E tratando-se de sentimentos, você a transformou em uma cópia sua. Queimou o amor, deixou apenas dor e ódio. Você é bom nisso. - Se você lembra, eu não queria ir naquela tecnocasa. Alias, de que se tratava a votação? - Você quebrou a lei. Estávamos decidindo se devemos incapacitar você ou dar privilégios adicionais para que as suas ações não ultrapassassem a lei. - Incapacitar seria matar? - Sim. - Mas vocês decidiram levantar o meu status até o titulo de munt? - Sim. - Ha-ha três vezes. Alias, dentro da lei, quem devia ter colocado sêmen na Liana? - Um peladinho. - O-o!!! Tem algum senso de justiça em tudo isso. - Você simplesmente não tem informação necessária. Em que, na sua opinião, um peladinho é diferente de um munt? Eu não respondi a pergunta retórica. - Peladinhos não tiveram sorte. Eles conseguiram telepatia, mas não perderam as mãos. - Os peladinhos - são telepatas? - Engraçado, né? E esse é o problema deles. Eles não precisavam de língua para se comunicar, e acabaram esquecendo dela. E, junto com a língua, a cultura, a tecnologia, a escrita e toda a bagagem de conhecimentos carregada pela humanidade durante toda a história. A primeira leva de colonizadores deixou o planeta bom demais. P transformou num paraíso para macacos. Não é necessário pensar em pão para sobreviver. - E vocês? - Nós, munts, não podemos ficar sem tecnologia. Sem a tecnologia nós vamos morrer durante a seleção natural. Você ouviu falar sobre Darwin? Mas o que estou explicando para você? Lembra o que tinha acontecido com Liana. Aqueles munts que esqueceram da civilização, morreram. Que nem os pitecantropos. Tudo de acordo com Darwin. - Fiesta, volta pro começo. - Pros pitecantropos? - A Onda. O que aconteceu na terra depois da minha partida? - Vocês, a elite estelar, foram os primeiros a sair. Vocês foram treinados, todas as melhores naves foram doadas para vocês. E, depois de vocês, uma segunda onda de emigração começou. A Terra mobilizou todas as forças. Transportadores gigantes eram construídos. A sua nave podia ficar pulando pelo espaço o quanto quisesse, mas os transportadores tinham recursos para duas dúzias de saltos apenas. - E vocês não conseguiram escapar da Onda? - Estou falando sobre os degs atualmente. Sim, eles pegaram a Onda no espaço. Meus antecedentes pertenciam à terceira onda de emigração. Naquela época as pessoas escapavam usando qualquer coisa que podia voar. Não é possível chamar aqueles caixões de naves nem teoricamente. Corpos gigantes, não herméticos, eram construídos, preenchidos com câmeras gigantes com pessoas em estado de anabiose, cinqüenta pessoas cada uma, com recursos para três meses de vida, colocavam um motor naquela lata - e vá passear. Você tem três saltos para tentar a sorte. - Três saltos - é apenas uma tentativa. - Exatamente. Sabe quantos caixões como este estão na galáxia? Cada um deles tem duzentos e cinqüenta mil pessoas. Dois entre cada três enviaram o sinal de SOS. Obviamente, ninguém os salvou. Serviu apenas de um sinal para os outros: "Não nos sigam". - Como você sabe tudo isso? - Fiquei estudando os arquivos. Tobi não te disse que eu sei tudo? - deu uma risada torta Fiesta. - As estatísticas foram publicadas abertamente. O governo queria diminuir as expectativas de vida. Estatísticas das catástrofes, limitação de nascimentos, limite de idade - e, mesmo assim, muita mais gente queria sair para o espaço do que as naves podiam levar. - Quantos foram evacuados? - Quando os meus ancestrais partiram - aproximadamente quarenta por cento. Talvez mais uns dez por cento depois de nós. - E depois? - E depois os ancestrais aterrissaram aqui. Essa foi a segunda onda de colonização. Um quarto de todos os colonizadores morreu antes da aterissagem. - Radiação? - Não. Simplesmente não deu tempo de tirar todos da órbita. As câmeras de anabiose pararam de funcionar. Três shuttles foram destruídos nos primeiros dias da aterrissagem e mais dois um pouco depois. - E depois? - E depois os colonizadores foram pegos pela sombra da Onda. E nos tornamos telepatas. Aqueles que não morreram. Implantaram controle genético extremamente rígido no planeta. Portadores de genes defeituosos foram esterilizados. - Quem decidia quais mutações eram construtivas e quais não eram? - Que diferença faz? - deu risada triste Fiesta. - Aqueles que decidiam morreram faz muito tempo. Bobo. Não é tão assustador assim. Homens não perdiam a atividade sexual e nas mulheres eram implantados embriões com genes limpos. Qualquer uma podia dar à luz e educar um filho. Somente agora nós castramos os peladinhos. Antigamente tudo era de acordo com a ciência. - E de onde apareceram os munts então? - Não tenha pressa. Tudo não foi tão ruim assim até chegar a terceira leva de colonização. Ou a segunda onda da emigração. Aquelas pulgas que ultrapassaram a Onda, pulando pelo espaço. Tipo vocês, os da elite. Mas eles não podiam pular por muito tempo, apenas cem anos. Vocês, a elite, ficaram saltando durante quinhentos. - Que diferença faz, quem pulou quanto? Nós pegamos a Onda, eles pegaram a Onda... - Sim, eles pegaram a Onda também. No começo isso não era aparente... Mas telepatas e não-telepatas não conseguiam conviver juntos. Nós deixamos as cidades para eles, construímos aldeias. E depois nós juntamos com a natureza de vez - Fiesta soltou uns palavrões. - Tão simples, todos pegaram e foram para as aldeias? - Obviamente, não! - os olhos dela brilharam de raiva. - Alguns ficaram. Muito poucos, mas ficaram na cidade. A mutação de telepatia não é permanente. Algumas gerações depois ela desapareceu, passou para a forma latente. E aí uma outra sombra da Onda nos pegou. Apareceram nós, munts. E a fase passiva de mutação dos degs tornou-se ativa... Fiesta ficou silenciosa por um bom tempo, olhando para as nuvens. Dois traços molhados de lágrimas atravessaram o rosto dela. - E depois? - E depois os camponeses cansaram de plantar coisas. Eles passaram a coletar frutas. E nas cidades a mutação que os degs pegaram no espaço começou a aparecer. Para manter os sistemas tecnológicos em um estado funcional é necessário um certo nível de inteligência. Quando o nível dos degs ficou abaixo desse valor, eles foram obrigados a deixar as cidades. - Por quê? - É possível viver na cidade sem luz, sem água, sem produtores de comida? - Entendo. - Crianças passaram a morar nas aldeias abandonadas. Meus parentes naquela época já moravam nas florestas. - É o fim da historia? - Falta a última página. Nos, munts, estamos tentando manter a inteligência no planeta. Nada salvará os degs. Mas os peladinhos têm uma chance. Para isso temos que apagar a telepatia deles. Nós cruzamos degs e peladinhos. Destes casais nascem filhos não-telepatas. Quando a telepatia desaparecer de vez, os peladinhos se tornarão salvagens comuns. Eles terão uma outra chance de virarem Humanos. Renascerá a língua, a cultura... - E os telepatas atuais, não são salvagens? - Animais. E eles não têm a mínima chance de se levantar. Eles não precisam de língua. Língua é a ponta crucial de uma civilização. Efeito de criança na floresta. Qualquer criança-telepata pode ser tirada da mãe e educada para ser um ser Humano. Mas somos muito poucos para criar uma colônia auto-sustentável que possa sobreviver. Daqui a três-quatro gerações os peladinhos se tornarão salvagens novamente. Tirar a telepatia da humanidade é a única saída. E temos muito pouco tempo. Daqui a algumas gerações os filhos dos degs perderão completamente a razão e serão inúteis para os cruzamentos. Mas antes disto não sobrará nenhuma tecnocasa. - Por algum motivo eu achava que a telepatia seria um dom. Próximo passo da evolução. Homo Super. - Você se enganou. A telepatia deve ser destruída. Eu lembrei como Tobi atirava com o stunner e estuprava as meninas, como cortava os sacos dos homens. Lembrava com todos os detalhes, sabendo que ela estava lendo os meus pensamentos. - Isso é necessário - disse Fiesta no mesmo instante. - Conhece algum outro caminho? Então diga. Nós não conhecemos. - Você pelo menos acredita que vocês, munts, conseguirão algum sucesso? - fiz eu a minha pergunta principal. - Que diferença faz em que eu acredito? - gritou ela com dor. Levantou e foi em direção à casa. Flatter reviveu e correu atrás dela. Por algum tempo eu fiquei prestando atenção no barulho dos passos dele. Porque ela precisou apontar o stunner pra mim? Eu saí para o balcão da torre de observação e sentei no concreto quente. O globo cor-de-sangue do sol já tocou o horizonte. Os campos pareciam brilhar com luz verde escura. Bonito. Nadezhda teria gostado daqui... Não há mais porque ir para a cidade. Meia hora de conversa e não sobrou nenhum segredo. Tem um planeta de merda, e tem duas tribos de merda: degs e peladinhos. E tem pastores de merda que, utilizando meios de merda, tentam resolver um problema de merda. Bandeira nas mãos deles. Não tenho nada a ver com a merda local. Vou embora daqui para algum lugar distante. Encontrarei um lugar bonitinho, construirei uma casa... Não, encontrarei uma tecnocasa abandonada em algum lugar na beira do mar, vou plantar alguma coisa. Treinarei um ciber para coletar abacaxis das árvores... Minha tecnocasa ficará na beira de mar. Estrelinha amava mar e rochas... Quando criança ficava feliz quando a água do mar estava quente. Isso sempre foi um milagre para ela - mar com água quente e suave, na qual é possível nadar. Será que os munts não estão enxergando que a guerra delas está perdida? Que ele podem apenas sair bonito do palco? Aparentemente, não estão enxergando não. E por que eu acho que ele vão perder? Sair do palco é fácil. Isso não requer esforços. Lutar até o fim é muito mais difícil. Tirar com as mãos a merda do esgoto no qual o planeta se transformou. Sujo de merda dos pés até a cabeça, cheira como um pedaço de merda e parece ser um. Mas aquilo que você está tirando pode se transformar em alguma coisa útil. Nem que seja como esterco para plantas. Mas ninguém te chamará de algo útil, mesmo que você esteja sujo disso e parece isso. Enquanto alguma coisa cresce sobre o que você tirou do esgoto, você se afoga completamente nele. Não vai ter nem cruz nem estrela no seu túmulo. Ninguém coloca cruzes em cima de merda. "Historia dos munts". Versão resumida. Porque raios eu estou filosofando aqui? Este planeta é meu? Não. Eles vieram aqui antes. Eu sei o que fazer? Não. Munts sabem. Eles são muitos, eles são fortes, que eles segurem a bandeira. Tudo já foi decidido muito tempo atrás. Eu perdi o meu jogo, paguei todas as contas, deixem o cadáver em paz, droga. Fiquei sem fazer nada por quatro dias. Tomava sol na torre de controle, olhando para os campos; nadava com Tobi; lia mensagens eletrônicas dos munts na rede. O tema principal, obviamente, era eu. Ou melhor, o que fazer de útil comigo. A idéia principal: um munt móvel. Isso é demais! Gritos de alegria e melecas cor-de-rosa. Cada uma fazia questão de inventar uma tarefa para mim. Para eu ir para algum lugar a centenas de quilômetros, trabalhar que nem um condenado e voltar, após terminar a tarefa, orgulhoso da minha existência. Por exemplo, eu deveria consertar a usina nuclear e construir um farol gravitacional para que todos os perdido da elite do espaço chegassem até nós. Cada idéia passava por uma discussão séria, entrando em todos os detalhes. Jardim de infância. No quinto dia enjoei de ficar sem fazer nada, Tobi foi cumprir alguma ordem da Fiesta e eu comecei a examinar a tecnocasa. A casa era bem conservada. Bem melhor do que a da Veda ou da Liana. Obviamente, muitas coisas precisavam de manutenção, mas cansei de arrumar o ferro velho dos outros. De ir para algum lugar a centenas de quilômetros cansei também. Surpreendentemente, eu nunca vi a Fiesta descansando. Companheira, mas não chata, sempre compreensiva, ela era a única pessoa que não fazia planos a meu respeito. Se bem que ela é telepata. Estudei todos os mapas, fotos antigas tiradas do espaço e escolhi uma tecnocasa para mim. Na beira do mar. "Existem montanhas e também existem mares". Não lembro quem disse isso. Algum poeta. Lugar interessante. Um pouco menos de duzentos quilômetros da tecnocasa da Veda e setecentos quilômetros daqui. Não tem mais nada perto. Fiquei em dúvida por mais um dia, escolhendo a ação mais preguiçosa e me arrestei para o hangar para consertar o helicóptero. Seria possível preparar um flyer leve de passeio em menos de um dia para qualquer vôo, mas os instrutores na Terra avisaram que as tecnologias populares deviam ser evitadas a qualquer custo. Cansaço de metal e micro-trincas. Uma asa pode cair para fora durante o vôo, o motor pode cair na terra. É difícil voar num flyer sem motor. O centro gravitacional muda. Certo, será que fui contaminado por Tobi por conversas inúteis? Comecei a consertar o helicóptero mais próximo à saída. Primeiramente verifiquei o spin-gerador, carreguei a bateria a partir de um gerador "de mão" com pedais. Transformando tudo o que eu pedalei em quilômetros, daria no mínimo uns oitenta. O spin-gerador deu partida na segunda tentativa. Peguei um cabo de um braço de espessura do depósito, liguei no helicóptero e no painel elétrico, ligou. Sob o teto acenderam luzes sem sombra. Obedecendo aos meus comandos, o carregador reviveu. Chega por hoje. Cansei como um negro nas fazendas. Não desliguei as luzes. Saí para a escuridão e me arrastei para a tecnocasa. - Bonito - disse Fiesta. - Você deixou a luz acesa de propósito? Olhei para trás. O hangar brilhava com todas as janelas como um brinquedo de natal. Talvez pudesse até parecer bonito. Tem que testar o gerador sob carga pesada, para ele não falhar durante o vôo. - Sim. Fiesta fez barulho com a boca. - Você não está com frio, andando sem roupa assim? - Já me acostumei - respondeu ela. Amanhã vou testar a parte elétrica do bordo, piloto automático, complexo navegacional. A parte mecânica fica para depois. Dormir.... Foi só abrir o portão do hangar que me senti no deserto. O sistema de refrigeração do spin-gerador fazia barulho pesado, jogando ar quente, de queimar a sola dos pés. Certo, um modelo pequeno de spin-gerador representa um modelo aumentado das desvantagens dele. Noventa por cento da energia elaborada ele gasta com ele mesmo. Respirando fundo, eu corri para dentro e apertei o botão de abertura de todos os portões. Nem pensei que os motores ficaram parados sem óleo por uns duzentos anos. Mas tive sorte. Como barrulho de ferro sobre vidro os portões começaram a se mexer pros lados. Descansei por um momento lá fora, no frio do calor de meio-dia de verão, depois entrei no inferno novamente. Queimando as mãos na maçaneta, abri a porta da cabine e alterei o modo de funcionamento do gerador para o modo de desligamento. Segunda maior desvantagem: spin-gerador não pode ser desligado de repente. É necessário diminuir a potência devagar. Caso contrário esta máquina de dez toneladas ficará vermelha, se derreterá e sujará o seu terno com metal quente. E depois disso escorregará no chão e estragará o tapete. Pois é. O meu gerador se desligou muito rápido, em uns trinta-quarenta segundos apenas. Uns dois-três segundos depois o sistema de refigeração desligou também. Silêncio completo tomou o hangar novamente. Eu tirei a camisa molhada de suor pela cabeça, coloquei num degrau da escada de alumínio e fui para fora. O hangar ficará frio em umas duas-três horas no mínimo, mas atualmente não é possível trabalhar nele. Estranho - da tecnocasa com uma boa velocidade estava correndo uma caravana de carrinhos blindados e barrigudos com canhões trespassados nas torres. Sem parar os carrinhos se reagruparam em forma de linha e pararam bem na frente do portão do hangar. Mais frescuras da Fiesta? Que raios?!! A Fiesta pulou desajeitadamente do primeiro carrinho. - Onde pegou fogo?! - O que pegou fogo? - Sensores infra-vermelhos detectaram saída de ar quente. - A-a.. Acalma-se, eu estava verificando o spin-gerador. Agora abri os portões para refrigerar. Olho para os carrinhos. Antigamente eles eram vermelhos, mas a tinta saiu. E os canhões não são canhões mas sim jogadores de água. Carrinhos blindados acabaram sendo carros de bombeiros. Estava me sentindo um idiota paranóico. Fiesta olhou nos meus olhos, deu uma risada curta e começou a rir em voz alta. - E eu - eu fiquei tão assustada! Nunca tive a chance de apagar um incêndio na minha vida! - E depois falou sério: Ignat, por que você quer um helicóptero? - Cansei de movimentar os pés. Coloca o esquerdo na frente do direito e direito na frente do esquerdo. E fica repetindo muitas-muitas vezes. Fiesta mexeu a cabeça de acordo, com cara pensativa. - Mark Twain (********)? - Acho que sim... Ela abaixou as costas e foi indo em direção à tecnocasa. Os carrinhos se arrastaram atrás dela. Como um monte de ovelhas atrás do pastor. Eu acho que a chateei de alguma maneira. Se bem que... foda-se. - Acorda, criatura! Por quanto tempo é possível viver no passado?! - Eu vou acordar, olhar para os lados e falarei: "Deus, como é bonito aqui! Pessoas maravilhosas! Bonitas, inteligentes. Não é um planeta, é um paraíso na terra!". Tobi devia ter voltado ontem. Fiesta está esperando por ele, preocupada. "Não se preocupe com ele" - continuei eu mentalmente. "Provavelmente cortou duas bolas a mais, por isso atrasou". Fiesta junta os lábios de raiva, faz barulho parecido com o silvo de uma cobra furiosa e sai correndo da sala. Por que estou enfurecendo ela? Levanto-me do sofá e vou até o hangar. Falta trabalho para uns três dias ainda. Tobi voltou mais à noite. Com uma ferida enorme embaixo do olho. - Ignat, fala para a Fiesta que eu fiz tudo. Eu vou até a Liana. Eu acho que ela está com saudades. - Não se apresse. Daqui a dois dias eu levarei você até a Liana em duas horas. - Eu não quero que a Fiesta me encontre. Ela vai perguntar e depois xingar... Eu sei que não sou um ranger bom mesmo. - Eu não sou a Fiesta. Conta para mim. Limpo as mãos com um pedaço de pano, saímos do hangar e sentamos num banco de madeira que eu fiz. - Eu já estava voltando quando vi uma peladinha. Ela estava nadando no rio. Eu atirei com o stunner e ela começou a se afogar. Eu levei para a praia, comecei a preparar... Ah, você sabe, fazer carinho naqueles lugares para ela ficar feliz. Acabei de preparar e ela me diz: "Mais, mais, mais embaixo!". - Peladinha? Falando?! - Ela não era peladinha. Era dos degs. Ela tirou a roupa do outro lado do rio e eu não vi. Eu falo para ela que, já que ela é deg, nós não podemos. Rangers não podem com degs. E ela diz que agora já está tarde demais, tem que fazer. E eu digo que não podemos de jeito nenhum, não importa o quanto ela estava querendo, senão a Fiesta ia ficar brava... E aí ela me bateu. Não conta para a Fiesta, pode ser? - Não vou contar não. E a Fiesta não ficará brava com você também não. Ela é delicada. Escuta, Tobi, você tem um analisador! Como você não conseguiu diferenciar um peladinho de um deg? Tobi ficou completamente vermelho. - Eu não segurei o analisador no sol por muito tempo. Tem que segurar ele no sol por uns cinco minutos no mínimo, para ele acordar. Ele dorme no escuro. E eu não o segurava no sol fazia muito-muito tempo já. - Entendi. Acabou a bateria. Isso é melhor não contar para a Fiesta. Por isso ela ficará brava com certeza. - E por... - Ah, Tobi, Tobi... Nenhuma tarefa que você começou você pode abandonar pela metade. Ela tinha razão por bater em você. Estranhamente, o Tobi ficou mais alegre. - Corina também falava que nem você. Agora eu sei. Até agora eu estava andando e pensando, sem saber se fiz certo ou não. - Você fez certo, mas mal. Mas podia fazer bem, mas não certo. Tobi ficou pensativo novamente. Por que eu fico zoando o retardado? Ele não tem culpa de que os ancestrais dele acabaram tocando a Onda. Que de mil variações diferentes de mutação apenas uma pode ser considerado positiva e as outras 999 jogam a espécie para trás. - Entendi! - Brilhou de alegria Tobi. - Bem malvado e maldade boa. Veda estava contando. Integridade e batalha entre sentidos contrários! Bem... Quem estava falando alguma coisa sobre retardados por aqui? A ajuda do Tobi apressou bem a tarefa. Não, ele não entendia nada sobre a tecnologia, mas existem inúmeras operações do tipo "segura", "me passa", "traz". Nós terminamos em um dia e meio. Eu olhei em volta - para apressar os reparos eu tirei peças de três helicópteros vizinhos e, por algum motivo, chutei a roda dianteira. Tem oito atmosferas de pressão nele e ele é rígido como uma pedra. Mas tradição é tradição. Sentei no assento esquerdo e liguei o gerador. O helicóptero se tornou vivo sob as minhas mão, virou para esquerda, movendo de maneira desajeitada as rodinhas dele e saiu do hangar. Parei depois de me afastar uns duzentos metros do hangar. - Sai da cabine - eu falei para Tobi. - Por quê? - Primeiro vôo. Não é permitido. - A-a.. - Tobi saltou na rocha da pista de decolagem. Eu comecei a apertar os botões, preparando a máquina para o vôo. Uma multidão de reportagens começou a aparecer. - Controle do spin-gerador - pronto para decolagem. - Controle de sistemas hidráulicos - pronto para decolagem. - Controle de sistemas navegacionais - pronto para decolagem. - Complexo navegacional - pronto para decolagem. - Piloto automático - não pronto. Eu falei alguns palavrões em voz alta e pedi para detalhar. - Sistema de navegação terrestre não responde às requisições. Sistema de navegação por satélite não encontrado. Torre de controle não responde às requisições. - Funcionamento autônomo. Modo de "trilha de gato" - mandei eu. - Entendido - concordou o piloto automático. - Complexo navegacional pronto para decolagem. Piloto automático pronto para decolagem. Máquina pronta para decolagem. Isso é bom, o fato do helicóptero ter entendido o comando "trilha de gato". Não importa para onde eu voar, o piloto automático lembrará a rota e conseguirá voltar. Repetirá a rota com precisão de alguns metros apenas. Coloco as mãos no manche. Durante seis anos biológicos eu não sentava na cabine de um helicóptero. E aquele era pequeno, rápido, fácil de controlar. No lugar de manche ele tinha um joystick. Que nem em avião de caça. Os instrutores judiavam de nós. Eu e Bonus não tínhamos nada contra, mas as meninas não gostavam. - De onde num planeta desconhecido vai aparecer um helicóptero? - se revoltava Vulcãozinho. - Não importa o que vocês vão controlar. O importante é a confiança própria - a convencia um piloto idoso. Com dificuldade eu tiro as memórias da cabeça. Spin-gerador para modo de funcionamento regular, hélice para modo de funcionamento normal. Barulho grave, as pontas da hélice se separam, dobrando o comprimento do mesmo. Regulador passo-aceleração para cima, bem devagar... Vamos lá... A hélice gigante, com cinco pontas, começa a se mexer. Mais e mais rápido. "Tah-tah-tah-tah" rítmico se torna um "tur-tur-tur-tur" rápido. Não estou com pressa. Devagar, eu aumento o número de rotações, me acostumando com a máquina. Separação. A máquina, tremendo um pouco, se levanta e se segura na altura de quatro metros. Verifico a sensibilidade do controle. Manche um pouco para a direita, um pouco para a esquerda, para trás, para frente. Pesada, o monte de ferro é pesado demais. Neste caixão tem que voar devagar, com dignidade. Aumento o número de rotações e vou verticalmente para cima. O horizonte se abre como num passe de mágica. Bonito. Campos, florestas... Visão - um por um milhão. Na altura de sessenta metros eu bruscamente mudo o regulador passo-aceleração para cima até o fim. Por um momento achei que tinha sobrecarregado a hélice, mas o barulho do gerador atrás de mim aumenta. Jogo a máquina para frente e para cima. Barulho quieto de metal rasgando, sombra comprida passa atrás do vidro e começa a tremedeira. Tremedeira de tirar o manche das mãos. Não tinha entendido ainda o que tinha acontecido, mas a mão esquerda bate no botão vermelho de desligamento de emergência do spin-gerador. Mão direita segura o manche. Regulador passo-aceleração para baixo, hélice para modo de rotação automática. Tudo isso são reflexos. Entendi! Quebrou uma das pontas da hélice. Que auto-rotação agora, droga! Qual "quebramento" da hélice principal? A máquina pesa trinta toneladas. Vou acabar quebrando a hélice de vez, cairei como uma pedra. Já vou indo. Não vou conseguir desligar o spin-gerador!!! Ele precisa de meio minuto e eu tenho apenas seis segundos no máximo... Altura idiota - sessenta metros. Não dá tempo de fazer nada... O horizonte se fecha rapidamente. Que pena... Estava bonito. Então, é o fim? Muito estúpido... Ainda bem que não vai acontecer de repente. Tenho tempo para me avaliar. Estou com medo? Não. Tédio. Vou até você, Estrelinha. No último tempo abro a porta da cabine. Freqüentemente elas ficam presas nos acidentes... Abro os olhos. Vivo. "Somos imortais" - falava Bonus. Vivo... Que droga! Onde estou? - Acordou? Que bom. Fica deitado, não se mexa. Quero perguntar o que aconteceu comigo, mas os lábios não se mexem. - Fala pensando. Eu estou te escutando. Você destruiu o helicóptero e se queimou um pouco. Tobi te tirou e se queimou um pouco também - explica Fiesta. Desculpa, Estrelinha, eu me atrasei para o nosso encontro novamente. "Um pouco - o que isso quer dizer?" - pergunto a Fiesta pensando. - Não se preocupe. A pele se regenera bem. Por que você não ejetou o spin-gerador? Por quê? Porque as pessoas que estiveram no espaço não fazem isso. Porque nave sem o gerador é um caixão. Morte, lenta, que dura durante meses e anos. No espaço morte instantânea é mais desejada. "Não pensei que algum idiota fosse me resgatar". - Se você pronunciar isso perto do Tobi, eu vou matar você - diz Fiesta. Eu acredito nela. Fico deitado, estudando o teto. Não sinto o meu corpo. Provavelmente, estou entupido de medicamentos até não dar mais. A medicina aqui não está muito bem. Isso acontece freqüentemente nas colônias. Alguma área da ciência ou tecnologia se desenvolve muito rapidamente. Ultrapassa inclusive a Terra. As outras são esquecidas. A colônia não tem forças para tudo. O que é bem desenvolvido por aqui? Correção: o que foi bem desenvolvido? Agricultura. E conseguiram fazer spin-geradores pequenos. Geradores pequenos, bem bonitinhos. O spin-gerador começa a derreter por dentro. Metal se derrete lá. Muito rapidamente a área quente espalha até as paredes. Mas as paredes são frias. Por algum motivo isto causa chamas e gotas de metal derretido voam para todos os lados. Mostraram para nós durante o treinamento. Aula prática. Para que ninguém em sã consciência se atrevesse a ficar parado perto de um gerador defeituoso. À noite, bem tarde, levaram um gerador velho num caminhão até o deserto e desligaram rapidamente. Rios de metal derretido pareciam muito bonitos embaixo do céu azul e escuro. Tobi entrou embaixo destas gotas, tirou os cintos e me tirou do assento. Burro. Eu sou burro. Por que eu abri a porta? Ele não conseguiria abri-la. Entra Fiesta, animada. Senta e fica me olhando. - Olá, voador. "Olá" - respondo eu pensando. - "Como vai o meu salvador?". - Melhor que você. Ele não tem nada quebrado. Isso quer dizer que eu tenho. É uma notícia interessante. - Você é uma anormalidade interessante - continua Fiesta. - Você colocou uma correnteza nova num pântano antigo. Eu? Fico até curioso. - O conceito de dever - explica ela. - Um munt existe para devolver um dever. Até o Tobi foi contaminado por isso. Fica deitado, feliz da vida por ter devolvido o dever para você. - "Qual?". - Você salvou o amor dele. Ele salvou você. Agora metade da rede está ocupada descobrindo quem deve o que para quem. É até honorário ser um devedor. Como se fizesse parte de um papel maior. - "Moda. Moda para mim, para idéias novas". Fiesta, colocando a cabeça em cima de um ombro, fica pensando sobre as minhas palavras. - Isso não é mal também. De vez em quando teremos que colocar alguma moda nova na rede. A sua experiência será útil - ela sorri para mim e sai do quarto. Flatter, batendo os pés no chão, a segue, fechando a porta. E eu volto a estudar o teto. Não é coisa de moda. Munts estão ocupados com um trabalho inútil, morto. Eles não conseguirão salvar o planeta. Eles ficam sentados nas tecnocasas deles e não enxergam o que acontece em volta deles. Ou talvez enxerguem, sim. Talvez até entendam que o jogo está perdido, que tudo é inútil. Mas ficam escondendo este pensamento fácil uns dos outros. Cada uma vê que a derrota é eminente, mas tem medo de se abrir na frente das outras. É mal viver sem um sentido na vida. E por isso sacos dos homens são cortados, pessoas são paralisadas com stunner e as mulheres são estupradas. Seqüestram as crianças para educar cortadores-de-bolas e estupradores deles. Não é útil para ninguém, mas não é possível recusar. Recusar significa assumir a derrota. E aí eu apareço. Com idéia nova - o sentido da vida significa devolver um dever. Jogo novo. Dá para deixar de pensar no antigo por um tempo. Mas quem foi a primeira pessoa a falar sobre o dever foi a Veda, não fui eu. Colocou um dever - um robô perdido - nas minhas costas e mandou salvar a Liana. Fico relembrando a Veda. Dura, determinada, decidida. Confiante - dizia Liana. Orgulhosa, determinada, auto-confiante, uma pessoa que se acha um comandante. Mas ela é respeitada na rede, não dá para negar isso. E a moda sobre o conceito de dever foi criada por ela, com certeza foi ela. Lady de ferro com aperto de aço. Liana... Uma menina ainda. Tímida, boa, confiante. Ou Fiesta - boa também. Sábia, uma mãe com cabelos brancos que entende tudo. Sem filhos... O que elas têm em comum? Posição ativa na vida. Trabalho e determinação. Idéia fixa. Não, elas não podem fingir na frente das outras. Aparentemente, por trás da castração dos homens e estupros das fêmeas existem chances boas afinal. Por que raios eu fico quebrando a cabeça sobre os problemas deles? Não tenho nada a ver com isso. Continuo sem sentir o corpo. Lábios não se mexem, mas consigo usar a voz. Fiesta não diz nada contra. - Fiesta, por que eu sempre acabo dormindo antes de você trocar as faixas? - Não quero que você fique berrando como um porco assassinado. Isso me atrapalharia. - Está tão ruim assim? - Como vou saber? Você está deitado como um tronco de árvore. Eu fico enchendo você de sedativos. - Por quê? - Bobo, para não sentir a sua dor. Se eu ficar sentindo a sua dor não conseguirei trabalhar com você. - E Tobi? - Já está andando. Mas não deixo ele chegar até você. Ele vai conversar com você até a morte. - Não tem problema... - Estão intactos sim! Estão intactos tanto os seus braços quanto as pernas! - fica brava a Fiesta, lendo meu pensamento escondido. - Genitálias estão intactas também. Tudo está no lugar, fica calmo. Ontem eu fiquei calculando no computador as possibilidades de aterrissagem com spin-gerador catapultado. Realmente, você tem razão. Não devia ter ejetado ele. - Por quê? - pergunto eu, como se isso me interessasse. - Máquina mais leve teria amplitude de balanço maior. - Tremores. - Isso mesmo, tremores. Isso causaria um momento de torção forte na base da hélice principal. Resumindo, as hélices adicionais se quebrariam atrás da primeira. - Só não me diga que tive sorte. - Você teve sorte. Você perderia as pernas. Eu imagino a construção da cabine, como ela se enfia para dentro na batida, e entendo que a Fiesta tem razão. Dá vontade de matar o cara que a projetou. - Quer uma partida de xadrez? - oferece Fiesta. - Sabe o que a minha mãe me dizia? Nunca jogue cartas com profetas. - Não entendi... - Você é telepata. Você vai saber tudo o que estou pensando. - Vamos jogar pela rede - dá risada Fiesta. - Você aqui e eu no outro canto da casa. - Então vamos jogar. Flatter coloca e liga uma tela grande. Na tela tem uma mesa de xadrez com peças já colocadas. Fiesta sai e aparece na tela um minuto depois. A primeira partida eu jogo com metade do empenho - e perco. A segunda já jogo com todas as forças. Empate. Mas entendi o ponto principal. Não sou um oponente à altura da Fiesta. Ela joga com qualidade infinitamente melhor. Então, ela vai deixar eu levar a terceira partida. Para eu não desanimar do jogo. Para que eu não entendesse o que eu já tinha entendido. E se eu não quiser ganhar? Ela tem como objetivo perder e eu não deixar ela perder. Jogo dentro do jogo... A terceira partida acabou se tornando um jogo rápido. Não sei como isso aconteceu. Nós ficávamos gritando os movimentos cada vez mais rápido. Flatter mal conseguia mexer as peças. E eu ganhei. Nem percebi como. Fiesta bateu o olho no tabuleiro. Sorriu. - Você é um inventor... Chega por hoje. Boas coisas têm que vir devagar. Está na hora de trocar as faixas. Caio no sono. Fico deitado, regenerando a pele, olhando para o teto. Fiesta me "desvicia" dos remédios, por isso o corpo inteiro dói como um dente doente na água fria. Entra Tobi. Ele se mexa com incerteza. Percebe-se que ele está cheio de faixas embaixo da roupa. E parece meio tímido. Sorria com incerteza. - Ignat, eu vim para tirar uma dúvida. - Já que veio, senta. - O problema é o seguinte - Tobi mexe os ombros, abre os braços e mexe a cara de dor. - Um certo alguém teve a idéia de me promover a um munt. Que nem você. Porque eu te salvei e casei com a Liana. E Fiesta quer que eu agradeça a todos pela confiança e recuse a oferta. E eu não sei o que fazer. E Fiesta me diz para eu recusar mais rápido, senão a rede inteira vai acabar brigando. Uma boba qualquer, que nunca tinha visto o Tobi, quis fazer uma boa ação. E agora a rede inteira está discutindo isso. Eles não sabem nada sobre o Tobi, mas pensam que estão no direito de decidir o destino dele. Interessante, o que acontecerá se eu jogar na rede os resultados do teste de QI? Sem dúvida alguma o do Tobi é inferior a 60. - Tobi, você tem amigos entre os rangers? - Claro! André, Horst, Eric, Robert. Todos os rangers são amigos. - Se você virar um munt, e eles não, eles ficarão com ciúme de você. E depois também vão querer se tornar um munt. E ficarão de mal com você. - Então você acha que tenho que recusar? - Sim, Tobi. Você acha que a Fiesta daria um conselho ruim? - Que pena... Eu já tinha até falado para o Eric. - Tobi! Bobo! Fala para ele que te ofereceram se tornar um munt e você recusou. Você é um ranger. Um ranger de verdade não troca o seu trabalho por nada. E pensa sobre mais uma coisa. Quando elas forem votar, não se sabe ainda se você se tornará um munt ou não. E se você mesmo recusar, vai parecer que você é digno, mas não quis. Os amigos não ficam de mal. E os outros rangers não vão querer se tornar munts também não. Tobi sai, cheio de planos e alegrias. E eu estou prestes a pular para fora das faixas. Me virei de mal jeito, e a dor gritante não me deixará em paz por uns cinco minutos. Cortador de bolas maldito! Toda noite fico voando num helicóptero. Não são pesadelos repetitivos. Pelo contrário. Vôo não no ferro local, mas num helicóptero pequeno esportivo, onde a gente treinava pilotar. Máquina fantástica. Potente, rápida, obediente. Na poltrona direita - Estrelinha. Não consigo vê-la, mas sei que ela está lá. Sinto a mão dela no joystick de controle compartilhado, sinto os pés dela nos pedais. A altura é mínima, e a velocidade máxima. Campos passam voando embaixo de tal maneira que parecem um tapete verde-amarelo. Puxo o joystick até mim. Jogo a máquina ora para esquerda ora para direita. A aceleração empurra o corpo na poltrona e o horizonte balança. Estelinha grita de alegria. Acordo. Foi assim mesmo. Inclusive a prova de pilotagem foi considerada válida, embora eu tenha quebrado uma dúzia de regras. "Vocês, moleques, são muitos e não tem naves para todos. Se você se matar, menos gente vai morrer durante a Onda" - disse o instrutor para mim. Eu então entendi porque os limites de velocidade tinham sido cancelados, porque desapareceu o controle sobre o estado dos equipamentos móveis, porque sumiram avisos de perigo nas praias e de onde veio a moda para esportes radicais. O planeta estava se preparando para a morte calmamente, com dignidade. E se desfazia dos cabeças-quentes. Ganhei uma cadeira de rodas e um ciber só para mim. Meu ciber é chamado Caifora. Ficou enchendo a minha paciência: "É necessário um nome para a identificação, é necessário um nome...". Eu mandei ele embora. E ele me diz: "Nome aceito. Meu nome é Caifora". Fico aprendendo a me locomover no corredor, estudando a tecnocasa. Até a catástrofe eu só tinha visto um corredor e uma dúzia de salas, sem contar o hangar. De repente descubro que todos os espelhos desapareceram. Jardim de infância. Posso sentar no computador a apontar uma câmera para mim. Mas vamos jogar de acordo com as regras. Espelho é um espelho. - Caifora, vá até o depósito e me traz a tela reflexo-protetora do sintetizador de comida. Ciber sai correndo e logo volta, carregando uma tela de metal, polida até o brilho. Olho nela como num espelho. Frankenstein. Eu sabia que não conseguiria ver nada de bom, mas o que eu vejo no espelho me assusta. Toda o rosto está em cicatrizes profundas e cheio de áreas de pele vermelha, recém-crescida. Fico surpreso pelos olhos terem permanecidos intactos. Fico me estudando por alguns minutos. Tento me convencer que não tenho porque que reclamar. Para que o ser humano precisa de unhas nas mão? Coisa do passado, raridade. Tenho unha no polegar direito, já está bom demais. Uso ele como chave de fenda. A mão esquerda parece estar em ordem. Nariz, lábios, ouvidos... Tudo intacto. Quase. Quem precisa do meu rosto, se a Estelinha não existe mais? Melhor assim. Mulheres não vão ficar me pentelhando. O importante é não aparecer na frente de alguma grávida. Pode perder a criança de susto. - Você continua afirmando que o Tobi fez uma ação boa, me tirando da cabine? - pergunto a Fiesta, que veio silenciosamente por trás. - Por que raio você culpa os outros pelos seus pecados? Quem consertou o helicóptero foi você, não foi? Você podia ter testado a hélice em todos os modos de funcionamento sem decolar. Você recebeu o que queria. Acredito. Acompanho com os olhos as costas dela enquanto ela vai embora. Interessante, por que as pernas dela estão sujas de óleo até os joelhos? Quase que disse - até os cotovelos. Encontrei uma sala subterrânea surpreendente. O interessante é que a entrada fica uns três metros acima da terra. O túnel vai levando primeiro para cima, depois para baixo, embaixo da terra, em ziguezagues. Portões de aço de quatro dedos de espessura. Em dois exemplares... E tudo isso está coberto por concreto para proteger dos acidentes da natureza melhor do que o centro de controle dos vôos na Lua. Isto é, agüentará até um asteróide caindo diretamente de cima. E lá dentro - estantes com livros. Biblioteca, resumidamente. Um ciber praticamente destruído, com metade das juntas, fica lendo os livros. Isso é, tira da estante, folheia e coloca de volta. Pega o próximo, folheia... Após ler uma dúzia de livros, vai até um equipamento gigante no canto da sala, do qual vem saindo uma folha de aço. Estuda a folha, joga algum líquido por cima e coloca por cima de uma pilha de folhas semelhantes. À noite eu pergunto para a Fiesta. - Essa é a cápsula de tempo - responde ela. - Quando os nossos descendentes conseguirem se erguer novamente, eles precisarão de conhecimentos. Aqui eles encontrarão todos os conhecimentos do mundo antigo. - Será que todos? - Todos que eu consegui coletar. Quem puder fazer mais do que isso, que faça. - E o que o ciber está fazendo por lá? - Transfere a informação de papel para aço. Papel não dura muito tempo. Portadores informatizados de computadores estragarão muito antes ainda. Aço com os textos agüentará durante milhares de anos. Os descendentes precisarão apenas de um zoom para ler tudo. - Para quantos anos o seu esconderijo foi projetado? - A previsão geológica prevê cem mil anos calmos. As folhas de aço agüentarão por cinqüenta mil. Após isso não é possível prever nada. - Eu achava que o geólogos manipulavam grandezas em ordem de milhões de anos. - Rios. Água vem destruindo as pedras. Tem um rio aqui por perto, você nadou lá. Ele deságua num rio maior. Agora o rio maior vem se afastando da tecnocasa. Mas ela vem levando terra, destrói as margens e quem poderá dizer por onde ela passará daqui a cem mil anos? - Falta muito trabalho por lá? - Não - sorri a Fiesta, pensando em alguma coisa - todos os livros que estavam nos computadores já foram transferidos para metal. Só faltam os livros de papel, mas eles são poucos. Mais uns seis meses e eu vou preencher a sala com nitrogênio, fecharei a entrada com concreto e terei um problema a menos para pensar. - E você tem certeza que depois de cinqüenta mil anos a humanidade sairá do estado selvagem? - E por que devem ser humanos? - sorri ela tristemente. Realmente, por quê? Já existiam três civilizações inteligentes além dos humanos. Dinossauros com inteligência duvidável, que acabaram de descobrir o fogo e mais duas civilizações de homens-pássaros. Ambas no nível da idade de pedra. O instrutor disse que eles não têm a mínima chance. Onda... Mas no outro canto da galáxia, onde a Onda estará enfraquecida, ela pode fazer o contrário e fazer a inteligência evoluir... - Estou falando sobre os felinos nativos - para de pensar Fiesta. - Eles pegaram a onda também. Agora estão evoluindo. Diminuíram em tamanho, mas começaram a se juntar em tribos. E esse é o primeiro passo para a inteligência. Eu fico calculando as probabilidades na cabeça. A garantia para as folhas de aço é de cinqüenta mil anos. Entretanto, a previsão geológica prediz um período duas vezes maior. Mas podemos fazer as folhas com espessura maior, aí eles agüentarão por mais tempo. Por algum motivo, 50 000 anos é suficiente para a Fiesta. Número estranho. Muito elevado para os humanos, muito pequeno para os gatinhos. A evolução gosta de contar anos em unidades de milhões. - O tempo de duração da cápsula foi calculado pela minha mãe - diz Fiesta com voz gelada. - Eu prometi que terminaria a tarefa dela. Entendeu? Entendido... Mais uma besteira... Fiesta levanta e sai correndo, cheia de raiva. Flatter vai atrás dela. Os munts são estranhos. Matar metade da própria vida para alguma tarefa inútil... Fanáticos? Tiradas as últimas faixas. Obviamente, não me conservei completamente. No pé esquerdo o dedinho foi amputado, nos dedos do pé direito não sobraram as unhas e dois dedos ficaram claramente mais curtos. Tudo bem, os polegares permaneceram intactos, poderei correr e pular. Fiesta teve um medo enorme de que eu entraria em pânico ao ver as perdas. Gostar mais de pés do que dos braços é um "mutocentrismo". Disse assim para ela. Tobi me explicou que as queimaduras frontais apareceram quando ele estava me tirando do helicóptero e as traseiras quando ele me colocou nas costas e o helicóptero estava jogando metal derretido em nós. Se olhar nas minhas costas num espelho as cicatrizem parecem runas. Runas que aparecem uma em cima da outra sem nenhuma ordem. Na frente apenas cicatrizes profundas e pontas. Tobi deu muito mais sorte. Ele conseguiu apenas queimaduras. Até o rosto ficou intacto. Diz ele que cobria o rosto com o cotovelo. A roupa de couro natural acabou sendo melhor do que roupa sintética. Ela queimou, mas salvou o dono. Passamos as noites quentes na beira do rio. Fiesta afirma que a pele deve respirar, isso faz as feridas se curarem mais rapidamente. Tobi concorda com ela e para mim tanto faz. Vou jogar fora a cadeira de rodas amanhã e vou nadar. Tobi está nadando faz três dias já. Um ranger chamado Horst visitou a tecnocasa ontem. Rapaz confiável. Aperto de mão de um homem, orgulho e calma, QI em torno de 65. Aqui isso é muito. Não importa como, mas ele usa cem por cento dos sessenta e cinco pontos de QI. Tobi andava em volta dele como um cachorrinho em volta do líder. Após o jantar Horst ficou a sós com Fiesta e ela ficou explicando por um bom tempo para o ranger como arrumar um conflito entre duas aldeias de degs. Eu escutava da minha sala - atendendo o meu pedido mental a Fiesta ligou a comunicação interna. De madrugada Horst foi embora. Mais uma vez eu corrigi a minha visão do mundo. Munts realmente governam o planeta. Por que isso me deixou tão surpreso? Tobi e Fiesta desaparecem para algum lugar por um dia inteiro e eu fiquei fazendo manutenção da tecnocasa. Apenas por tédio. O que mais eu posso fazer? Caçar? Dói para andar. Cicatrizes e pontos me prendem e doem. Agora posso fazer previsão do tempo. Quando as feridas começam a doer - chove. Tobi e a Fiesta voltam. Sujos até o pescoço e felizes até não dar mais. - Bom dia, voador. Gosta de surpresas? - De boas. - Então vamos. Eles me levam até o hangar de helicópteros. Credo! Dez máquinas estão desmontadas completamente. Peças desmontadas cobrem o chão. Perto do portão tem o desenho de um quadrado, feito com giz e dentro dele as peças estão colocadas em ordem. - Isso - Fiesta aponta para o quadrado com pé - são peças selecionadas e conferidas. Qualidade garantida. Você precisa só colocá-las no lugar - e voar... - Tobi... Fiesta... - Agradece depois. Cansei de voar nos sonhos. Ah meu Deus, por que você não voa normalmente pelo menos? Ou não dorme mais baixo? Você se diverte e eu acordo com grito de medo. Como é bom mergulhar num rio limpo, com águas transparentes, após um dia de trabalho. Todo dia eu e Tobi terminamos aqui. Limpamos o suor, sujeira e óleo um do outro. O helicóptero está quase pronto. Tobi não é acostumado a trabalhar com tamanha intensidade e, de acordo com os conselhos da Fiesta, às vezes eu faço uns dias de descanso. Tobi, feliz, corre até a floresta procurando por frutas e eu fico arrumando a tecnocasa. Não tropeço mais nos teclados dos computadores, deitados de lado das paredes na altura do tornozelo. Me adaptei. Acostumei até com o Caifora. Quando estou com preguiça de trabalhar, fico estudando os arquivos. Descobri que as ações dos rangers são registradas nos jornais computadorizados. No mesmo lugar temos também os valores obtidos pelos analisadores cromossômicos - as caixinhas pretas dos rangers. Munts sabem sobre o mundo deles muito mais do que eu supunha. É possível analisar os jornais correspondentes aos últimos cem, duzentos anos, organizar uma estatística - e ficará claro aonde está indo este mundo. Mas... deixa que a Fiesta cuida disto. Limpo os restos do sabonete e vou para a praia. Tobi está brincando num lago pequeno e fica brincando com a água. Como barulho de sininhos atrás de mim, ouço risada de moça. Viro a cabeça - e o coração para por um minuto. Não consigo respirar. Estrelinha! De trás da árvore está olhando a minha Estrelinha. Jovem - que nem no dia em que a encontrei pela primeira vez. Obviamente, não é ela. É uma peladinha local. Mas como é parecida... Agora o Tobi vai paralisá-la com o stunner, colocará no chão e estuprará bem nos meus olhos... Não deixarei isso!!! A menina dá um pulo, assustada e corre na minha direção, procurando proteção. Não deixarei ninguém encostar nela. Nem Tobi, nem Hosts - ninguém! A criança, escondida atrás de mim, olha para os lados, preocupada. - Olha só! Ela gostou de você! Não a machuca - aconselha Tobi. - Não a assusta nos primeiros dias, ela se acostumará e passará a andar com você. Para onde você for ela irá. Eu me acalmo e no mesmo minuto a criança se acalma também. Tobi joga água em nós e ela, rindo, corre até o rio. Levantando as pernas para alto, ela corre até um lugar profundo, mergulha, levantando uma nuvem de gotas de água. Mas como ela é parecida com a Estrelinha jovem... - Agora você também encontrou uma peladinha para você - diz Tobi. - Nunca mais você será tão triste assim. Todos os rangers acabam assim. Andam, andam e depois encontram uma, a levam junto e nunca mais querem colocar sêmen nas outras. Volto para a tecnocasa, confuso. Tobi tinha razão - a peladinha não quer ir embora. Ela não tem medo nenhum do Caifora e olha com interesse para as paredes de concreto. Fiesta nos encontra com carinho da mãe. E no mesmo momento ela começa a conversar com a peladinha, um discurso silencioso. Eu nem iria ficar sabendo disto, mas a peladinha começa a fazer caras, rir e gesticular de repente. - Você terá muitos problemas agora. Se você pretende viver por muito tempo com ela, você vai ter que tomar conta dela e a educar. - Sei. - Não, eu acredito que ainda não sabe. Mas vou te ajudar. Você já inventou nome para a sua namorada? - Fi-fiesta, mas ela tem idade para ser a minha filha. - Entendo. Quer ser um papai. Bom também... para começar. A peladinha faz uma cara e começa a mexer as mãos. - Ela diz que já tem um nome - diz Fiesta para mim. - Mas como posso explicar ele com palavras?.. Bichinho. Deixa ser Bichinho. - Bichinho? A Peladinha grita e começa a mexer as mãos na minha direção. - Não um bichinho assim. Você o imaginou de forma errada - explica Fiesta. - Um bichinho pequeno, branco e peludo. - Tem que explicar para ela como se comportar na tecnocasa... - digo eu. - E qual é o problema? Imagina a ação de forma clara e decidida. Ela entenderá. Com Liana você não teve problemas. Lembro o que eu tinha ensinado para a Liana. Mandava usar a floresta no lugar de banheiro. Sem contar a manutenção, só a ensinei a cozinhar. O que será que a Fiesta tinha em mente? Liana não teria contado sobre a floresta pela rede... Fiesta dá risada. Telepata maldita! Seguro a mão da Bichinho, a mão forte e quente dela e a levo para conhecer a tecnocasa. Explico para que serve o vaso sanitário, torneiras, como acender a luz e fechar as janelas. Uso imagens que ela possa entender. Torneira - um rio pequeno. Lâmpada embaixo do teto - luz do sol numa floresta escura que atravessa os galhos. Fechamento das janelas - uma nuvem que fechou o sol. Bichinho está feliz. Acompanho ela até uma sala vizinha da minha. Tento explicar para que serve o cobertor. Mais uma explosão de alegria. O cobertor é cheirado, tocado e mordido (escondido de mim). - Não, pequena, não é uma folha nem uma pele de animal - sorrio. E o coração bate mais forte ao ver o sorriso dela. Jantamos em quatro. Bichinho está confusa e assustada, porque nós estamos tentando ensiná-la a usar um garfo. - Para! Deixa para lá - comanda a Fiesta. - Ela não gosta é da geléia e não do garfo. Corto a maçã em pedaços, tiro o meio, coloco no prato - e o garfo passa a ser utilizado. Se bem que maçã pode ser comida com as mãos também... Mas assim é mais engraçado e jogo é jogo. Após o jantar levo a Bichinho para a sala dela e, apesar dos seus protestos, a coloco para dormir. Volto para a Fiesta. - Você tem certeza que não a quer? Diferença de idade de dez anos não é tão grande. - Fiesta, você entende tudo. Eu a quero proteger dos rangers - e só. - Se você soubesse como está confusa a sua cabeça... Tudo bem, faremos uma tatuagem para ela. Rangers são alfabetizados, vão ler a tatuagem e não a tocarão. - Ela é uma pessoa viva ou... - Isso mesmo. É sobre isso que estou falando. Ela é humana? Você passou algumas horas com ela. Como você avalia o intelecto dela? - No nível de criança de cinco anos. Mesma alegria, mesmo nível emocional. Fiesta fica pensativa. - A sua avaliação acabou sendo um pouco elevada. Instinto de imitação e telepatia você confundiu com intelecto. Lembre-se, ela é um animal. Muito inteligente, facilmente treinado, mas animal. Não uma pessoa. E a culpada principal pelo fato dela ser animal é a telepatia. Na infância ela não foi educada a usar a língua. Língua é a base da civilização, o portador do conhecimento. Resumindo, a pedra crucial da civilização. Tire a língua de um ser inteligente e ele se torna um animal. - Não acredito. - Em quê? No fato dela ser um animal ou na telepatia? - Nisso de a telepatia ser culpada por tudo. Telepatia é um novo, mas poderoso canal de comunicação. Vídeo no lugar de áudio. Como isso pode acontecer? - Acontecer o quê? O canal mais potente destruiu no lugar de elevar? Piada da natureza. Telepatia substituiu a fala, mas não conseguiu assumir todas as funções dela. A cultura é baseada em fala e escrita. Telepatas não conseguiram - ou não tiveram tempo para criar um substituto para eles. - Mas vocês, os munts, não perderam a inteligência! - Nós não desencanamos da língua. A-a.. Entendo você. Imagina um efeito de trigger. Telepatas ultrapassaram o ponto depois do qual não é possível voltar para trás, para a natureza. Pessoas podem, mas os telepatas não podem. A lei de evolução - para alguma qualidade nova tem que pagar com alguma das velhas. - Os peixes saíram para a terra, criaram pulmões e não podem voltar para o oceano... - Você entendeu! Mas telepatas voltaram... e viraram peladinhos. - E por que vocês voltaram? - Não nós! - Fiesta brilhou com olhos, brava - Eles! E por quê? Os degs os expulsaram das cidades. Antes eu também não entendia o porquê. Agora conheci você - e entendi. - Por quê? Sou tão chato assim? - Pior. Porque você não faz por mal. Você pode envenenar a alma. Você, como uma nuvem de chuva, fecha o sol. Dá vontade de correr para longe de você. Para qualquer lugar, mas para perto do sol. E quando eu penso que na cidade existem milhares de pessoas como você... Aí os telepatas saíram das cidades. Por vontade própria, e sem obrigação foram para um lugar onde pensamentos venenosos não envenenam o ar. - Telepatas precisam de um meio-ambiente artificial para manter a inteligência? É isso? - Isso. - Da área tecnológica os degs os expulsaram. E eles se tornaram selvagens, certo? - Sim, exatamente. A civilização nova acabou sendo frágil como um vidro. - Agora vocês querem destruir a telepatia, cruzando os degs com peladinhos. Vocês pensam que, ao perder a telepatia, os degs inventarão a língua novamente. - Bom menino. - Si-im... Bandeira nas suas mãos então. - Não precisa rir. Isso é muito mais trágico do que você pensa. - Não estou dando risada. Mas não sou um ajudante para vocês. Tenho vontade de vomitar das coisas que vocês fazem. Precisava andar pelo espaço durante quinhentos anos para... - Ignat, eu peço, não atrapalhe. Não destrua o que já existe. É necessário manter a inteligência no planeta de qualquer jeito. A história nos castigará de qualquer jeito. Conversamos... No meu quarto lembro da Bichinho. Abro a porta dela e olho para ela. A moça está dormindo, se dobrando em cima da cama. Cobertor jogado no chão. Sonhos claros para você, criança. De manhã descobri que a Bichinho não estava na tecnocasa. Fiesta confirma: foi para o campo. - Sabe qual é o seu nome agora? - perguntou ela. - Triste-Deprimido-Assustador-Aquele-Que-Perdeu. - Bichinho inventou? - Quem mais? Claro, está certo o fato dela ter ido. Não vou atrapalhar o sol para ela. Mas como ela é parecida com a Estrelinha jovem... Aberta, confiante. Não, aberta e confiante a Estrelinha virou no espaço. Quando nos conhecemos, ela era um ouriço. Qualquer coisa - e soltava espinhos para fora. Mas dava para perceber que.. não eram espinhos dela. Ah, chega... Para que envenenar a alma? Bichinho veio - e saiu. Não consegui ser nem professor nem um pai cuidadoso. Mal terminei de pensar quando escuto um grito de raiva na rua. Uma vez e outra. Será que é a Bichinho? Corro pelo corredor, pulo por cima do Caifora e me acalmo. Bichinho não consegue abrir a porta principal. Todas as portas abrem para dentro, e esta para o lado. Bichinho fica empurrando com o joelho e gritando. Mas, assim que ela me percebe, fica quieta e tímida. Abro a porta para o lado e a deixo entrar na sala. Com ambas as mão ela segura umas cebolas no peito e, logo após entrar, tenta dar todas elas para mim. - Olha só! - fica maravilhado Tobi atrás das minhas costas. - Nunca vi tantas de uma vez só! É muito difícil encontrá-las! A Bichinho não quer devolver as cebolas para Tobi. Nós a seguramos pelos cotovelos e levamos até a cozinha, lavamos as cebolas embaixo da torneira, e Tobi faz um prato com elas. Corta em pedaços pequenos, coloca sal e mais alguma coisa. Eu achei que ele fosse misturar com a geléia, mas este prato deve ser comido separadamente. Ao ver que a comida é colocada em quatro pratos, Bichinho faz uma tentativa de colocar todas as quatro porções na minha frente. Mas de repente, bem na hora certa, aparece a Fiesta e entre as telepatas começa um discurso inaudível. Ensinamos a Bichinho a usar garfo novamente. Desta vez temos maiores progressos. Mais entra na boca e menos acaba caindo na mesa. Após o almoço eu e Tobi vamos para o hangar. Falta apenas uns cinco dias de trabalho lá. Bichinho nos segue. Sentou perto da parede, colocou o queixo sobre os joelhos e ficou observando como estávamos consertando o ferro velho. Mas logo ela fica entediada de olhar e encontra um jogo perto dos portões. Fica construindo alguma coisa de pedrinhas e grama. Eu fico sentindo uma sensação nova e desconhecida de paternidade. Após o trabalho todos vamos nadar. Até a Fiesta se junta a nós. Ensinamos a Bichinho a nadar de maneiras diferentes. Ela consegue se segurar na água, mas só sabe nadar que nem um cachorrinho. Fiesta repassa para mim as perguntas da Bichinho. Quem são os cachorros e como eles nadam. Fico lembrando concentrado de todos os cachorros conhecidos. Depois dos cavalos e camelos. No terceiro dia Fiesta fala para mim que a Bichinho não quer mais dormir sob telhado. - Vamos colocar a casa pequena do Ignat na beira do rio - sugere Tobi. - Também quero dormir no ar aberto. Demoro para entender que ele está falando da barraca. A idéia é legal, mas... Tobi com Bichinho na mesma barraca... Jovens, quentes... Tobi já tem uma esposa, chega! - Tudo bem! - digo. - Tobi, você queria fazer uma barraca para você. Agora tem um motivo. Até o almoço fizemos duas barracas. Fiesta aconselhou colar no lugar de costurar, por isso conseguimos terminar bem rapidamente. Uma barraca é pequena, portátil e a outra é grande, dá para andar nela sem se abaixar. Após o almoço fomos até o rio. Eu com Tobi, Caifora e Flatter carregamos a comida, Fiesta não carrega nada e Bichinho pela iniciativa própria pegou um cobertor leve da sala. Obviamente ela está progredindo na adaptação dela. Daqui a um par de dias vou ensiná-la a usar roupa. Focando na utilidade dos bolsos. No terceiro dia seguido vou andando feliz, orgulhoso de mim e da Bichinho. O mundo ficou mais brilhante. Como se mãos cuidadosas de alguém o tivessem limpado com um pano úmido. Bichinho é fantástica! Brincalhona, animada, bondosa e insistente - e ao mesmo tempo humilde. Ela não está nem aí que eu pareço um monstro, que tenho medo de olhar no espelho. Mas o principal é que ela é curiosa. Curiosidade é a chave para o desenvolvimento do cérebro. Se eu e a Estrelinha tivéssemos uma filha, ela seria assim. Pena, mas não posso comparar o genoma da Estrelinha e da Bichinho. Possivelmente elas tiveram parentes comuns de algum lugar da Escandinávia. Não pode aparecer por si mesma tanta semelhança entre a aparência e o comportamento... - Não se iluda quanto ao comportamento, papãezinho - atrapalha os meus sonhos Fiesta. Ela não me chama mais de nenhum outro jeito a não ser papãezinho. - Aparência sim, é coincidência. Mas comportamento... A menina tenta se comportar de um jeito que você goste. Tinha até um termo específico para isso antigamente... Deixa lembrar... Sim! Paquera! - Ficou louca? Paquerar é coisa completamente diferente! É um comportamento brilhante e chamativo. - Lembre-se da telepatia e ausência de concorrência - sorri Fiesta. Bichinho, acabando do sair do rio, vem correndo e senta na areia entre nós. Encosta em mim com o lado molhado e frio. Atrás dela vem correndo Tobi, molhado e frio do mesmo jeito. Abraço Bichinho pelos ombros com o braço direito e fico virando palitos com carne sobre o fogo. Mais uns dois minutos e teremos um churrasco excelente. Todos ficam olhando para mim e para o fogo com esperança. Finalmente dou um comando e passo o palito que parecia ser o melhor para o Flatter. Durante duas horas ontem fiquei ensinando-o a tratar churrasco. Quatro manipuladores acabaram sendo muito pouco para isso. Tive que colocar um anel no corpo dele para colocar uma das pontas do palito lá. Um manipulador fica segurando o palito, dois ficam segurando o pedaço de carne para não deixar cair no chão e o último corta um pedaço com tesoura e coloca na boca da Fiesta. - Simplesmente fantástico! - fica surpresa a Fiesta. - Ïsso é gostoso! - Como eu poderia fazer alguma coisa diferente? - estufo o peito orgulhosamente. - Poderia, poderia. Liana me contou que vocês comeram coisas horríveis. - Mas... aquela vez... - procuro desculpa. - Não tinha sal... Bichinho não gosta do churrasco de jeito nenhum, o que a Fiesta informa para mim e recebe um grito de raiva da Bichinho (A menina realmente está me paquerando. Fazia de conta que gostava para não me chatear). Após o almoço a Bichinho sai correndo com uma bolsa (progresso!) para coletar frutas e vegetais, Tobi coloca um cobertor na grama para tomar sol (Na sombra!). E eu com Fiesta ficamos conversando em voz baixa. - ...Não, não precisa apressá-la e pressionar. A vontade de aprender a língua aparecerá por si mesma. Ela já sente falta de alguma coisa além de mímica e gestos. - Mas... Tantos dias já se passaram... - Novo ambiente, novas caras, novos costumes - deixa a menina entender tudo isso e compreender o que falta para ela. - E se ela sair correndo para as florestas? - Não se preocupa, não correrá. E mesmo se correr - você vai detê-la à força? - Não, obviamente. Mas ela precisa casar daqui a pouco. Tem que achar um marido. Bom, inteligente... E eu não conheço ninguém por aqui... - Exatamente como eu falei - papãezinho. Não vê nada, não entende nada nos sentimentos da filhinha. Credo, como é difícil para vocês - os não-telepatas... Isso aconteceu na manhã após o dia que eu testei o helicóptero. Eu e Tobi ficamos bem cansados, arrumando o hangar e dormimos assim que chegamos até a cidade de barracas na beira do rio. E de manhã eu sonhei com a Estrelinha. Estava fazendo amor com ela. Quente e perdidamente, como se fosse pela última vez. Quando acordei, o sonho acabou se tornando realidade. Mas no lugar da Estrelinha os meus lábios se encostaram nos lábios da Bichinho. Era o seu corpo que eu sentia à noite, era o peito dela que eu segurava na mão... Eu queria ser um pai para ela. Educá-la e ajudá-la a crescer. Dor, muita dor! Eu estuprei o meu próprio sonho. Como posso acreditar em mim após isso? Tobi está perdido. Bichinho está chorando e tentando fazer carinho em mim. Fiesta está furiosa. - Me explica, por que você está assim? Isso é um incesto? Ou você decidiu ser um eunuco pelo resto da vida? - Você não entenderá. - Eu entendo tudo. Mas e você se entende? Domesticou a criança, mas pelo menos alguma vez na vida você pensou o que ela quer de você? Que ela pode ter planos próprios também? Ou você não liga para os desejos dela? - Acabou, já chega - levanto decididamente e começo a arrumar a barraca. - Levarei Tobi até a Liana e depois vou procurar uma tecnocasa vazia para mim. Precisa transmitir alguma coisa para a Liana? - Não para a Liana. Pode visitar a Veda? Eu esperava que você pudesse levar alguns canos e cabos para ela. - Levarei. Onde eles estão? Coloquei o helicóptero ao lado dos portões do depósito. Tive que cortar os canos pelo meio. Senão não entrariam no helicóptero. Colocamos rolos de cabos elétricos com núcleo de cobre pesadíssimos por cima. Como os munts trabalham com eles? Este peso está além dos limites do Kent ou Flatter. Aparentemente, eu vou ter que dar conta disso... Enquanto nós e o Tobi estávamos colocando os cabos, a Bichinho estava perdida perto de nós. Depois leu alguma coisa nas nossas mentes, coletou a bagagem e sentou num canto da cabine. A bagagem é um cobertor, um pedaço de pau qualquer e um caramujo. Olhos vermelhos, cheios de lágrimas e cara brava. Ah, Bichinho! Você escolheu bem o seu protetor... O que vou fazer com você agora? Levanto a máquina na altura de duzentos metros e escolho a rota até a tecnocasa da Liana. Tobi parece estar meio perdido, mas a Bichinho não tem medo de altura. Todas as preocupações são esquecidas, a felicidade brilha por todos os lados. Todo minuto tenho que segurá-la para que ela não aperte alguma coisa sem querer no painel de controle. Aterrisso a dois quilômetros da tecnocasa da Liana. Mas o barulho do helicóptero é audível a muitos quilômetros de distância. Ainda no ar enxergo duas figurinhas correndo em nossa direção, uma viva e outra de metal. Por isso não desligo a hélice. - Posso sair? - pergunta Tobi. - Deve. Não quero encontrar a Liana, senão só farei mal para o Tobi. Mas Bichinho, pelo contrário, quer conhecê-la. Fica puxando o meu braço, fazendo carinhas bravas e de coitada, grita. Os gritos dela possuem centenas de emoções e já consigo entender algumas delas. Mas não é uma língua. Apenas transmissão de emoções. - Se quiser, vá com Tobi, conheça a Liana - digo para a Bichinho, acompanhando as palavras com imagens. - Vou esperar por aqui. Não, a Bichinho não quer ir sem mim. Nos despedimos do Tobi. Coloco um rádio no ombro dele que estava no depósito de emergência do helicóptero. O Tobi já sabe como usá-lo. Fiesta tem três mil destes rádios no depósito, mas ninguém sabia sobre eles. Inércia do pensamento: já que está escrito que é um "depósito de emergência", ninguém nunca se perguntou o que é que está lá dentro. Durante trezentos anos armazenavam como a coisa mais preciosa, esperando uma catástrofe do helicóptero... Malditas pessoas teóricas. Levanto a máquina para uma altura de trezentos metros e tomo rota para a tecnocasa da Veda. Vou ter que descarregar os cabos sozinho. "Deixa o azarado nadar" - cantava Vulcãozinho. Como será que é a continuação da música? Coloquei o helicóptero no pátio interno da tecnocasa da Veda. Já aterrissado, virei a máquina e coloquei até os portões do depósito. Veda estava observando as manobras a partir da escada do prédio principal. Bichinho, ao olhar para ela, se assustou e se escondeu num canto atrás da minha poltrona. Mas, assim que eu parei a hélice, desliguei o spin-gerador e me preparei para sairela , foi a primeira a sair da cabine com a vista mais orgulhosa, independente e ameaçadora que conseguiu fazer. Veda sorriu e foi na minha direção. - Droga! - xinguei eu, jogando os cintos. Se as mulheres brigarem, eu não apostaria nada na Bichinho. Apesar de tudo. Mas ambas as mulheres olharam para mim como para um idiota e começaram o discurso silencioso delas. Não completamente silencioso porque a Bichinho gritava, mexia os braços e fazia as caras. Eu me acalmei, abri os portões do depósito e coloquei a primeira leva dos cabos no ombro. Quando voltei, as mulheres já tinham se entendido. Até mais do que isso - a Bichinho estava chorando, colocando o rosto no ombro da Veda e a abraçando. Ela a acalmava, olhando com raiva para o meu lado. Pois é, se entenderam completamente. Homens precisam de meio-ano para isso. Homem e mulher - uma noite. E para elas - três minutos. Será que é telepatia? Se bem que não. A Estrelinha e a Vulcãozinho se deram bem em menos de cinco minutos. E é difícil encontrar pessoas mais diferentes do que elas. Coloco a segunda leva de cabos nas costas. Um pouco mais de cem quilos. Tropeço, mas me arrasto até o depósito. Não dá para usar o Caifora para descarregar as coisas: não tem forças para isso. Vai quebrar os manipuladores, e quem vai ter que arrumar vou ser eu. Volto para a terceira leva. As amigas estão paradas uma do lado da outra, observando. Bichinho se mexeu para tentar ajudar, mas a Veda a segurou. - Não ajuda. Deixa ele sofrer um pouco. Deixa o gato se sentir na pele de um rato. Quando ficar mais inteligente, ajudaremos. Ela disse isso em voz alta, ou seja, para mim. Problema seu. Quase me dobrando sob o peso do cabo, vou me arrastando para o depósito. Bichinho está perdida. Ela não está acostumada com jogos psicológicos. Após a quinta leva a Bichinho corre para algum lugar, chorando e Veda desiste: - Ei, homem-de-ferro, inquebrável! No hangar de barquinhos tem mais um homem-de-ferro. Chama-se carregador automático. Espera, temos que conversar. O que você está fazendo com a menina? - Eu estou fazendo? - Não entende não? Eu entendo tudo. Tudo o que você poderia me dizer, eu sei. Vulcãozinho cantava algumas vezes: "Porque nunca o filho do pecado amará uma criatura pura". Essa é a minha resposta. - Citação, não é? Você tem pensamentos próprios? - fica brava Veda. - Mostra onde está o seu cavalo de ferro. A Bichinho se adapta à tecnocasa surpreendentemente rápido. E eu... para que alguém poderia precisar de canos, se quem vai ter que fazer a manutenção sou eu? Isso mesmo. Obviamente, esgoto. Completamente entupido... Três dias, desde manhã até a noite estou sujo até o pescoço naquilo mesmo. Nós somos sortudos - dizia Price. Eu com certeza sou! Para comemorar o fim da manutenção faço um dia de banho, porque até a Bichinho começou a afastar a cara de mim. Veda nunca escondia as emoções Dela, mesmo. Cortei o cabelo e a barba, transformei a ducha num banho finlandês, acabei com todo o sabonete. Mas me senti como se tivesse nascido novamente e dormi sobre lençóis de verdade, brancos e limpos. De manhã comecei a preparar o helicóptero para o vôo. Está na hora de procurar minha casa. Não estou mais sozinho e a Bichinho terá uma família própria daqui a um ou dois anos. Veda estava andando do meu lado, nervosa, com medo de começar a conversa. - Diga, companheira. - Deixa a Bichinho comigo. Eu olhei para a menina. Agachada, ela estava brincando com a grama, fazendo carinhas engraçadas. - Não. - Você já colocou sêmen nela? - Não é da sua conta! Raiva cega chegou na minha garganta. Os punhos se juntaram de tal jeito que as costelas ficaram brancas. A Bichinho jogou a grama para fora e se encolheu, assustada, trocando olhares assustados ora para mim ora para a Veda. - Você não entendeu - disse Veda, brava. - Eu preciso dela. Se virou e foi embora, fechando a porta com o pé. Apenas depois de um minuto eu entendi que o Kent não estava do lado dela. E isso significa... - Não vá longe - falei para a Bichinho por algum motivo e fui correndo procurar a Veda. A encontrei na sala de manutenção. A blindagem superior foi tirada dele. Veda com pés e a voz controlava os manipuladores de conserto. - Baixo, baixo, baixo, direita, direita, baixo, direita. Segura! - uma série interminável de comandos seguia sem parar. - Segundo manipulador! Esquerda, baixo, baixo, esquerda, esquerda, baixo, segura! Ela estava tão concentrada que nem me viu entrando. Dois riozinhos estavam escorrendo dos olhos. - Quebrou? - Não atrapalha. - Quer ajuda? - Não. Não quero problemas. - Muito engraçado. O que aconteceu com o doente? - disse eu com voz agitada, me abaixando sobre o mecanismo aberto. - Não se aproxima! Não toque! Kent é meu! - gritou a Veda. Mas eu não a escutava mais. Coloquei as mãos nos mecanismos e tirei o que sobrou da suspensão. - Não se atreva! Não toque, maldito! Sai! Não toque! - Veda tentou me afastar com o corpo. - Tem algum de reserva? - perguntei, mostrando a suspensão quebrada para ela. Veda empurrou a minha barriga com a ponta do pé com todas as forças. Não esperando por isso, eu sentei no chão, machucando as costas. E recebi um golpe com a ponta do pé na mandíbula. Consegui escapar do terceiro golpe. Veda estava me atacando, quieta, concentrada e furiosa. O próximo golpe eu interceptei, puxei o pé dela para um lado e a mutante, perdendo o equilíbrio, caiu em cima de mim. Com um movimento rápido, eu fiquei em cima dela, encostei ela no chão frio. Embaixo da minha mão encontrei um peito quente... O resto aconteceu automaticamente. Corpo tentando sair desesperadamente de baixo de mim. Minhas mão amassando o peito dela. Lábios fechados, não querendo responder aos meus. Respiração quebrada, dor e desentendimento nos olhos dela... E no momento seguinte os lábios dela se abriram, me responderam com um beijo quente e selvagem. Briga furiosa das pernas e grito duplo - do vencedor e da vítima. Impulsos longos e fortes do meu corpo, como se eu estivesse tentando a empurrar para dentro das folhas metálicas frias que cobriam o chão. Depois estávamos deitados no chão frio. Eu sentia com a língua os lábios mordidos, olhava para o telhado cinza, me odiava e não conseguia entender como tinha chegado a tamanha decadência. E o que eu farei se Veda dar parto a um filho sem mãos? - Isso não é amor - disse. - Vá - disse Veda. - Aqui você já tomou tudo o que queria. Me levantei, ajudei-a a se levantar e a arrastei para o chuveiro. Lavei-a e me lavei também. Limpei as marcas oleosas das minhas mãos do rosto e das costelas dela, sangue das pernas. Enquanto lavava, quis o corpo dela novamente. "Agora não faz diferença mais" - pensei e tomei ela novamente. Tomei parado, furiosamente e com crueldade, prendendo num canto do chuveiro. Depois a limpei com toalha. Atendendo a requisição dela abri uma embalagem com remédios e dei quatro para ela. E depois voltei na sala de manutenção. Veda se arrastava atrás de mim, amaldiçoando e implorando para não tocar o Kent. Eu prometi prendê-la numa corrente se ela atrapalhasse e desmontei o Kent completamente. Veda se escondeu num canto e chorava devagar, olhando para mim constantemente. Isso foi um trabalho de verdade. Aquele que eu amaldiçoava no espaço e falta do qual as minhas mão sentiam tanto. Não tinha nenhum defeito grave, mas os mecanismos estavam completamente desgastados. Todos os espaços vazios cheios de sujeira. Óleo estragado junto com poeira. Uma junta atrás da outra eu limpava as peças com querosene, avaliava o nível de desgaste, procurava por substitutos, limpava, colocava de volta no lugar, verificava. Isso durou muitas horas longas. E de repente eu descobri que tudo tinha acabado! Último manipulador montado e configurado, só faltava voltar todas as peças no corpo do robô. Isso demorou no máximo duas horas. E aí o cansaço me pegou. - Acabou, amigo - expliquei para o Kent, terminando os testes. - A sua aparência consertaremos da próxima vez. Olhei para o relógio. A manutenção levou trinta e cinco horas. Bati os olhos num canto, onde brilhavam os olhos da Veda como duas faíscas e fui, meio caindo, procurar uma sala. De manhã na minha cama apareceu Veda. Acho que isso está virando alguma tradição - ir dormir sozinho e acordar em companhia. - O que você está fazendo aqui? - perguntei eu mentalmente. - Todo trabalho deve ser pago - responde ela em voz alta. - Você consertou o Kent. Eu também não gosto de viver devendo. - Prostituta - penso eu. - Cachorro - defendeu ela. Telepatia tem suas vantagens. Nosso encontro foi rápido e muito bem sucedido. Veda me sentiu e não cometeu nenhuma nota errada. - Prostituta de elite. Terceira vez na vida - deve ser muito dolorido para você. - E para você? - deu risada ela com o canto da boca. Eu limpei uma gota de sangue dos lábios com a língua. - Crocodilo que morde. Vá até o chuveiro, vampira. ...Poeira seca e amarga dos contatos elétricos. Lubrificante comum, lubrificante de silicone, lubrificante de grafite seco. Troca dos equipamentos desgastados. Embalagem hermética, embalagem isolante, embalagens anti-estática condutora. Sacos de embalagem sonora que viraram pedra, parafusos estragados, pregos estragados, pretos cortados. Ferrugem e cristais de sal... Ar muito úmido do mar. Vou arrumando a tecnocasa metodicamente. O trabalho me ajuda a esquecer. Não pensar sobre todas as porcarias que fiz por aqui. Não lembrar da minha cara queimada e pintada. Manutenção. Amaldiçoada e santa. Tudo como na nave. Mas tem duas horas a mais no dia. E nas noites quentes comigo está a Veda e não a Estrelinha. E no lugar de amor - brigas, nas quais nós jogamos para fora tudo o que ficou na alma durante os anos de solidão. E de manhã nos separamos como estranhos. Laços parentescos entre as almas pervertidas. - Não se preocupe com a Bichinho - diz Veda. - A bobinha está progredindo. Já sabe dezessete palavras. Se praticar constantemente, conseguirá aprender cento e cinqüenta. Talvez duzentas. Com um acordo silencioso eu dei a Bichinho para a Veda. Eu via como ela trabalhava com a menina. Com insistência e perseverança. Algumas horas por dia. E - dezessete palavras. Tem que ensinar crianças. Cérebro de adulto perdeu a flexibilidade. Inútil... - Inútil - repito em voz alta. - Sobre o que você está pensando? Boa pergunta. Principalmente vindo de uma telepata. Imagino um desenho de Shakespeare. Com bordas e datas numa plaquinha de cobre. Veda dá risada. - Você tem muita auto-estima. Imaginou que está sozinho contra o mundo... Nã-ão - sozinho no mundo inteiro! Meu solitário! - Não é assim? - Você terá uma criança - diz Veda de repente. - Ah, droga! - A mãe não sou eu. Bichinho. O genoma do embrião é completamente limpo. Não se preocupe, eu tomarei conta da criança. Não se preocupe com a Bichinho também não. Tudo está correndo bem. Quando a criança começar a falar, a mãe a seguirá e aprenderá mais umas duas centenas de palavras. Este mundo está me puxando como um pântano. Confiar a educação da criança para a cínica e ignorante Veda? Fazer isso por conta própria? Preciso disso? Reprodutor, droga! - Ainda não é tarde para fazer um aborto - diz Veda. - Cala a boca! - Você não é o Hamlet, é o rei Lir. Comeu o seu cérebro dos dois lados e não enxerga nada em volta. - ...E você pensou sobre mim quando estava reparando o Kent? É melhor não responder. Nem nos pensamentos. "Não pensem sobre macaco branco". Levantador de cargas do porto, capas protetoras pesadas do spin-gerador, cabos do gerador do helicóptero ligados no painel de controle, poeira amarga do testador, óleo preto, usado, suspensões quebradas, eixos cortados, parafusos estragados, testadores, tela verde de um osciloscópio de múltiplos raios, cheiro... Manutenção. Apenas manutenção. Não é necessário pensar. É possível não pensar até anoitecer. Dezoito horas por dia fazer de conta que estou fazendo alguma coisa grande e útil. Depois à noite virar um porco, devido ao cansaço e irritação e correr disso de manhã para o trabalho. Manutenção... Mês... mês e meio por tecnocasa. Dez tecnocasas por ano. Oitenta anos para oitocentas tecnocasas. Não conseguirei nem visitar todas. Não é um trabalho, é imitação de trabalho. Se estivéssemos em dez... Ciclo de manutenção uma vez a cada oito anos - isso seria real. Nós deixaríamos a nave sozinha por dez anos... - Ignat - Veda está escondendo os olhos, - Fiesta quer falar com você. - Urgente? - Sim, urgente. Olho para a bomba de água desmontada. - Eu a consertarei. Eu vou conseguir. Vá, a Fiesta está esperando. - Não tenta encostar em alguma coisa. Arrancarei os seus braços. Enquanto vou até o terminal de comunicação, fico pensando na besteira recém-inventada. Arrancar os braços de um munt. A mutação ficou tão comum que nem a percebo mais. A visão de um corpo sem roupa ainda machuca mais os olhos do que a falta de braços nos ombros. - Ignat, seu helicóptero está em ordem? - pergunta Fiesta em vez de me cumprimentar. - O que aconteceu? - Liana não responde pelo terceiro dia seguido. - E ela ficará feliz em me ver? Fiesta pronuncia algo que não é todo dia que consigo escutar de uma mulher. - Sairei voando daqui a duas horas. Daqui a seis horas estarei no local. Fim da comunicação - informo eu e desligo a tela. Mordendo os lábios vou até a minha cabine. Droga! Aqui não são cabines. É o dormitório, meu e da Veda. Manutenção acabou, salto de emergência. "Todos na cabine, Onda fora do bordo!" - gritaria Bonus com voz assustadora. Qual besteira a Liana poderia ter feito? Queimar o transmissor? Queimar o spin-gerador? Se perder nas montanhas? Tenho que levar Tobi junto. Se a Liana realmente se perdeu, não conseguirei fazer nada sem ele. Pergunta - onde ele está? Não importa. Se levantar a máquina numa altura de seis mil, seis mil e quinhentos metros, conseguirei localizar o rádio dele de qualquer jeito. Mas conseguirei levantar? Até quatro e quinhentos chegarei. Máquina vazia conseguirei levar até cinco e meio. Com aceleração conseguirei ganhar mais umas duas, três centenas de quilômetros. Eu só preciso localizá-lo. Encontrarei, ele não poderá se esconder. Preparo o helicóptero para vôo rapidamente. Pulo na cabine e em três golpes com a mão ligo uma dúzia de triggers embaixo do vidro frontal e executo os tentes antes do vôo. O sistema de navegação pelas estrelas está com defeito. Dane-se! Vou me virar. Ligo a hélice. E de repente percebo que a Veda está do lado da cabine. Abro a porta. - Quer voar? - ela mexe cabeça num gesto negativo. - Ignat, apesar de ser o maior canalha de todos o que eu conheço... Volta. Aqui é a sua casa. - Voltarei. Não encosta na bomba sem mim. Levanto a máquina cada vez mais alto e fico sentindo esta frase na língua. "Volta. Aqui é a sua casa". E de manhã tinha uma diferente: "E você pensou em mim quando estava consertando o Kent?!". "Volta. Aqui é a sua casa". Besteiras. Minha casa está onde está a Estrelinha. Túmulo - é a minha casa. O resto é um buraco para se esconder. Favela para passar a noite. O corpo já havia esfriado fazia tempo. - Quando ela morreu? - pergunto para o Caramujinho. - Há 52 horas. - Porque não reportou para a Fiesta ou outros munts? - Não tinha ordem. Coloco o corpo na mesa cirúrgica, empurro o Tobi com lágrimas nos olhos para fora e começo a autópsia. Não é a primeira vez. "Hoje no lugar de treinamento físico teremos um treinamento médico. Cadete Lovecraft conseguiu quebrar o pescoço na sala de esportes". Naquela vez as minhas mão tremiam. Resumidamente, o motivo é claro. Aborto mal-sucedido. Os ciber-cirurgiões não chegam nem aos pés dos nossos da nave. Arrumadores de ossos... Mas é necessário determinar os detalhes. Necessário... Ajuda nos partos e tratamento de ossos quebrados - são as únicas coisas que cheguei a estudar de medicina. Cortava corpos, fiz cinqüenta partos durante o treinamento. Para que as mãos não estivessem tremendo quando a Estrelinha fosse dar à luz. Tudo é conhecido. E tudo, claro, tirando os detalhes. - Arruma - digo para o ciber, tiro as luvas, lavo as mãos e vou na base de dados do computador. Aqui estão eles - os mapas genéticos da mãe, embrião, Tobi... E aqui está o último detalhe. Embrião de sexo feminino, mas não do Tobi. Liana não quis ter filho de um deg, quis fazer aborto. Não me chamou, idiota. Nós, tudo nós! Não sabem de nada, mas... Saio correndo do setor médico, soco a parede com força. Para limpar a alma. Encontro o olhar de cachorro do Tobi. - Como ela está? - Ela não engravidou de você. Quis de você, mas acabou sendo daqueles degs. Não conseguiu programar o ciber-cirurgião para aborto corretamente. E entendo de repente que o Tobi esperava escutar qualquer coisa menos isso. Ele queria um milagre. Eu salvei a Liana na primeira vez, liguei o spin-gerador, arrumei o helicóptero. Mas pessoa humana não é um helicóptero, nem spin-gerador. Não sei ressuscitar os mortos. Saio da casa, sento na pedra ao lado do rio. Eu a salvei. Me arrastei na chuva e vento por oitocentos quilômetros a pé. Salvei. E ela conseguiu quebrar o próprio pescoço sozinha. E de que adianta todos os meus feitos heróicos? Quando manda os rangers estuprar as peladinhas - tudo está certo. E quando foi estuprada - ficou louca... Se deitou embaixo da faca para não ter filho alheio. Idiota sem cérebro. Não, não consigo me ligar. Não quero viver neste planeta. Aqui crianças morrem. Tobi com Caramujinho preparam o velório e eu fico conservando os sistemas da tecnocasa. Uma parte da clorela separo, preencho com conservante e coloco no subsolo. Lá está escuro e fresco. Isso é para a replicação. Agüentará vinte anos. Depois será necessário pegar uma nova, da próxima tecnocasa. Uma parte da clorela levo para o helicóptero. Vai que... O resto jogo fora. Liana viveu na tecnocasa durante a vida inteira, mas nem sabia sobre o conservante. Pois é, é assim, de repente, sem perceber, que nos degradamos. Hoje esquecemos de uma coisa, amanhã de uma outra... No lugar da previsão genética cortamos os sacos. Previsão genética... Limpo os sistemas do sintetizador com água, preencho com vapor quente, nitrogênio, deixo hermetizado. Tobi leva para fora o corpo da Liana, coberto com lençol branco. O Caramujinho o acompanha. Ligo nas caixas de som externas a música preparada e saio da casa. Sob barulho estridente da marcha funeral cobrimos o túmulo com pedras. Levo o Tobi para a esquina e aperto o botão. Barulho de explosão. Pedaço de rocha de umas vinte toneladas cai para baixo e para a uns dez metros do túmulo. Eu e o Tobi colocamos uma rede de cordas de aço sobre ele e arrastamos até o túmulo com a ajuda de um carregador automático. Depois com pistola laser faço uma inscrição: "Liana, filha da Corina". Não cheguei a conhecer a contagem local de anos, por isso escrevo embaixo simplesmente: "16 anos". Ela teria 17 terrestres. - Eu vou indo? - pergunta Tobi, inseguro. - Espera até amanhã. Terminarei tudo por aqui e te levarei para qualquer lugar. - Não... É aqui perto... Até anoitecer termino a conservação dos sistemas da tecnocasa. Fecho com saquinho de plástico o último computador. Para que - não sei. A cada ano tem cada vez mais tecnocasas abandonadas. Vou dormir no helicóptero. Na tecnocasa está vazio, escuro e incômodo. Como num túmulo. De manhã Fiesta entra em contato comigo. Queria saber aonde o Tobi foi. Eu não sei. Ligo o complexo navegacional do helicóptero e com ajuda dele detecto a resposta do rádio do Tobi. Fiesta também o detecta. O ponto de interseção está perto da vila dos degs. Daqueles mesmo... Por que Tobi foi na aldeia dos degs? Tobi tem um stunner e ele foi para aquela mesma aldeia dos degs. Droga! Já no ar explico a situação para a Fiesta. - Ele não vai usar stunner contra os degs. Isso é proibido - diz a mutante. - Quer apostar? - falo com dentes fechados. Fiesta tinha razão. Tobi não se atreveu a tirar o stunner. Bateram nele e bateram por muito tempo. E eu cheguei tarde novamente. - Você chegou tarde, ranger - me disse um velho com cabelos brancos, dando o stunner do Tobi. - Quem é você? - O chefe local. Quando fiquei velho para correr pelas florestas, acabei parando por aqui na vila mesmo. Vivo, conto historias, como as pessoas moram em outros lugares. Me escolheram para ser o chefe. Antes era um ranger, que nem você. - Não sou um ranger. Sou dos Esquadrões da Vida. - Quem são esses? Escuto pela primeira vez. Espera! Foi você quem fez as pedras voarem pelo ar? Com dificuldade, me lembro do que ele está falando. - Sim. Estive aqui. Castiguei três retardados. Foram eles que mataram o Tobias? - Eles - respirou o velho, cansado. - Por que você não os deteve? Por que deixou chegar até a morte? - Foi ele quem começou - disse o velho, levantando-se dos joelhos. - Gritava "vou matar". Por que gritou "vou matar"? Tudo de acordo com a lei... Jovens são todos estúpidos. Antes nasciam inteligentes, mas agora o povo está ficando cada vez mais estúpido... Levantei dos joelhos também, levei o corpo do Tobi para o helicóptero. - Chama a população para uma reunião. Vou fazer a justiça. O velho, se apoiando numa bengala, foi até a vila. Tobi se deixou matar, mas não encostou no stunner. "Stunner não pode ser usado contra os degs" - esta é a lei... Planeta de idiotas sem noção! Sim, mas por esta lei ele deu a vida. Qualquer lei pode ser considerada uma frase estúpida enquanto ela não é paga com sangue. Deixa ser do seu jeito, Tobi. Os degs não verão o stunner. Mas a lei deve parecer uma força. Forte e impenetrável, que nem uma tempestade. E por isso - abro a bolsa pendurada do lado esquerdo do cinto e escondo o stunner lá. Apenas a extremidade dele aparece para fora. Tribos primitivas adoram milagres. Vocês verão um milagre... Coloco o helicóptero na praça da cidade, escureço os vidros. Não paro a hélice - apenas coloco em rotações baixas. "Tah - tah - tah" constante em cima da cabeça me acalma. O povo, olhando para a máquina com medo, começa a aparecer na praça. Está na hora. Coloco o capacete de vôo preto, luvas, fecho a roupa de vôo e saio da máquina. "Tah - tah - tah" - canta o hélice em cima da cabeça, me dando segurança. Vou em direção à multidão e ela se abre em forma de uma meia-lua. - Eu vou julgar vocês - as caixas de som escondidas nos bolsos transformam a minha voz em barulho de trovão. - Eu vou julgar vocês - o sistema acústico externo do helicóptero me responde como um eco grave. - Vocês três, para a frente - minha mão direita, dentro da luva preta, aponta para os rapazes, enquanto a direita está em cima do cinto. Os dedos fazem carinho no gatilho do stunner. - Os rangers devem ser ajudados. Sempre e em todas as tarefas! Os munts disseram assim. Você mataram um ranger. Vou castigar vocês por isso! Levanto duas pedras pequenas do chão e fico jogando na mão direita. Os camponeses sentem que alguma coisa está errada e em volta dos rapazes aparece um círculo vazio. Jogo uma pedra no peito do mais alto e ao mesmo tempo aperto o gatilho do stunner. Ele cai como um morto. A segunda pedra vai em direção do cara à direita. E novo tiro com o stunner. O terceiro começa a correr. Pego um pedaço de terra do chão e jogo nas costas dele. Errei! Segundo pedaço de terra se quebra na camisa nas costas do cara, mas o raio principal do paralisador não o acerta. Ele apenas é atingido levemente. Ele cai, começa a mexer as pernas e rolar no chão. Quando chego perto, olhos abertos e assustados de um morto estão olhando para mim. Não acredito - ele morreu de susto! Por um minuto fico parado em cima do corpo, jogo o pedaço de terra desnecessário para fora, viro de cara para o povo. - Lembrem, povo! Os rangers devem ser ajudados sempre em tudo! Eu vou castigar aqueles que machucarem um ranger! Passando por um corredor vivo vou até o helicóptero. Encontrando o meu olhar, as pessoas abaixam as cabeças. Mulheres estão chorando em cima dos corpos. Tiro o capacete, jogo no helicóptero e sento em um degrau da escada. Esta cara, estes olhos mortos, cheios de terror.. Vou sonhar com eles agora. Se bem que tem um jeito fácil de esquecer disto. É só olhar no espelho... - Filho da puta! Cachorro! O que você fez?! - o velho fica batendo com a bengala no chão, furioso. - Os rangers não podem machucar os degs! Esta é a lei! Só faltava você por aqui. Onde você estava antes, quando o Tobi foi chutado até a morte? - Quem te deixou pegar um stunner?! - continua furioso o ranger velho. A minha enganação não o confundiu. - Senta, velho. Quem faz as leis sou eu. Você me chamou de cachorro, mas eu nasci há cinco séculos. Eu voava de uma estrela para a outra enquanto nem o seu bisavô existia ainda. Eu sou a Elite Estelar. - Esses jovens pensam cada coisa sobre si... - diz o ranger velho, revoltado, mas acaba sentando. - Caifora, analisador de genes! - comando, sem virar a cabeça e ergo a mão. Ciber coloca uma caixinha preta nela. Encosto no antebraço e sinto a picada. Mostro as barras indicadoras para o chefe. Ele fica mordendo os lábios, depois segura a caixinha e faz uma análise dele. - Então vocês são assim - não há nada na voz além de um respeito infinito. Os psicólogos tinham razão. É possível escrever formulas da matemática na frente de um lixeiro até morrer, mas ele só começará a te respeitar quando você demonstrar que entende de lixo melhor do que ele. - Eu vou indo, velho... - Espera, Elite, o que posso falar para as pessoas? - Diz que eles deram sorte. Que você me convenceu a não castigar todos ao mesmo tempo. Se complicar muito, aperta o botão vermelho - passo o rádio do Tobi para ele. Por algum tempo fico observando como o velho fica explicando alguma coisa para a multidão em volta dele. Depois acelero a hélice e jogo a máquina no céu. Na tela de visão traseira vejo como as pessoas vão correndo, fugindo do vento e como o vento tira os telhados das duas casas mais próximas e os joga sobre as plantas. Por sorte, não matei ninguém. Mal tinha me afastado uns vinte quilômetros quando o piloto automático reporta que chegou sinal de SOS. Viro a máquina e vou voltando com velocidade máxima. Homens, em volta do velho, ficam mexendo as mãos, apontando para os telhados arrancados. Deixo a máquina flutuando na altura de 150 metros, ligo o piloto automático, encaixo o suporte da roupa num sistema de apoio e, através da saída no chão do helicóptero, desço, segurando uma corda, bem no meio da multidão. - Por que você quebrou as casas? - o velho me ataca. - Como as pessoas poderão viver nas casas sem telhado? Olho para as casas. A multidão fica quieta, esperando. - Você - aponto para o mais alto e forte, - escolha duas pessoas mais fortes, para consertarem tudo em dois dias. Você - aponto para o chefe - confira para ter certeza que eles vão consertar bem. Se fugirem do trabalho... Você sabe como me encontrar. - A gente dará um jeito sem você - diz o ex-ranger cuspindo no chão. Aperto o botão do controle remoto e vôo, preso no cabo, no céu. Você é inteligente, velho. Conseguiu ganhar pontos políticos em cima de mim. Apenas duas gerações te separam dos jovens. Será que a mutação progride tão rapidamente? - Como você se atreveu a matá-los?! Você não tinha o direito de matá-los!! - Eles são bandidos. Eles são perigosos para a sociedade e para o governo. Você é governo. Por que raios eu tenho que explicar isso para você? - Mas você não liga para o nosso mundo! Você cospe para ele! Você traz apenas dor e morte! - Só falta você falar que eu sou o culpado pela morte da Liana! - Se você tivesse ficado com ela... - Você quer dizer que eu sou o maior conjunto de merda neste planeta? - Sim! Se você pergunta desse jeito, então sim! Ela não deveria falar isso. Eu sei que não sou um anjo, mas não é ela quem vai me julgar por isso. - Escuta, mulher, e se agora eu achar um pedaço de merda, colocar embaixo do seu nariz e provar que este pedaço é você!!! Que eu, comparado com você, sou um anjo do céu, o que você fará então? A Fiesta ficou branca. Não, não é essa a palavra adequada. Ficou completamente branca. Mas não pude parar mais. Fazia as caras, mexia os braços, gesticulava, como se estivesse colocando a merda imaginária nas minhas mãos na cara dela. - Vocês, os munts, estragaram o planeta mais do que todas as sombras da Onda juntas! Vocês e a sua política de correção genética! Vocês cruzam os degs com peladinhos, para se desfazer da telepatia. E você sabe que a mutação regressiva dos degs é dominante em 97 por cento dos casos? No planeta não sobrará nenhum telepata, nenhuma raça completamente inteligente, apenas os degs! Os filhos dos peladinhos podem ser educados. Eles podem ser educados para crescerem humanos. Mas é impossível educar os degs. Eles perdem a inteligência no nível genético. - Não precisa gritar - diz Fiesta em voz baixa. - Eu sei de tudo isso. Os outros não sabem, mas eu sei. Não pensa mal de todos. - ...Sim, nós estamos numa M. grande, como você disse educadamente. Naquela época, há duzentos e cinqüenta anos, tudo parecia correto. A ação dominante sobre qual você ficou sabendo, nem era dominante. Ela aparecia em um caso a cada trezentos e a previsão genética dizia que ela desaparecia nas próximas gerações. O programa de correção genética foi aceito... Entenda, a gente tinha apenas pontos positivos! Degs parariam de regredir e os peladinhos perderiam a telepatia. Apenas os pontos positivos... - Então que raios?.. - A mutação dos degs progrediu. Isso não poderia ser previsto, isso é a Onda... - Mas até com olho nu é possível ver... - Não com olho nu. A mutação progredia muito devagar. Quem teria a capacidade de decidir quando o mal começa a ultrapassar o bem? 0.3% são desprezíveis. 1% também. E cinco por cento? E dez? Naquele tempo os degs se diferenciavam muito pouco das pessoas comuns. Isso foi visto apenas na estatística. Talvez, um QI um pouco inferior. Mas como saber, se entre as pessoas comuns tinha poucas pessoas estúpidas? - E agora? Agora tudo está claro. - Agora entre os munts não tem mais nenhum especialista em genética. Somos poucos e também regredimos. Eu, Jessica, Tamar - são todos os genéticos. Os outros, em qualquer ocasião, recorrem a nós. Nós temos algumas teorias para acalmar os outros. Termino de tomar o conteúdo do copo de uma vez. Álcool diluído queima a garganta, mas a cabeça permanece sóbria e clara. - Em que consiste a mutação dos degs? Aonde ela leva? Estou vendo o presente, mas não estou vendo a linha de evolução. - Com a mutação tudo está claro. A evolução voltou ao contrário. - Simplesmente pegou e voltou? - Sim, simplesmente. Você sabe que um embrião repete na sua evolução a história da espécie. Embrião humano tem até rabo... Tudo isso está nos genes. Os degs - como espécie - voltam pelo caminho que a evolução já tinha percorrido. - Homens - macacos - pequenos bichinhos com rabo - peixes - algas... Onde este processo vai parar? - Não sei. Somente sei que ele é milhares de vezes mais rápido do que o processo direto. Mas isso é fácil de explicar. O caminho já está feito. É muito mais fácil voltar do que fazer um novo caminho. Flatter, percebendo que o meu copo está vazio, o preenche. Automaticamente, sem perceber o sabor, bebo metade. - E os degs, o que os degs estavam fazendo? Vocês tiveram experiência de combate a mutações, não tiveram? Bancos genéticos, inseminação artificial, incubadoras de todos os tipos! - Não sei, Ignat. Nasci duzentos anos depois. Na boca, como na alma, gosto estável de merda. Tento limpá-lo com o resto do álcool. O álcool aqui é ruim. Não afunda o bisão. - Hein? - Na nossa equipe tinha um indígena. Os pais deles restauraram a espécie dos bisões americanos. E a Onda os deveria destruir novamente. Ele era meio louco sobre estes bisões. Todos os green-peaces são meio loucos. Era só ele beber um pouco que não conseguia falar sobre nenhuma outra coisa. Até cair de bêbado. Nós chamávamos este estado de desligar o motor, e ele - de afundar os bisões. O seu álcool não afoga e nem desliga. Está tarde agora, vamos conversar amanhã. Pacote informativo 5 A Terra teve sorte. Ela permaneceu como um planeta. O sol não explodiu, nem se tornou um globo frio e denso, nem uma nébula. E os planetas permaneceram nas órbitas também. O sol apenas se esfriou um pouco. Ou talvez as propriedades do vácuo foram alteradas e a Terra passou a receber menos energia solar. De acordo com a tradição, planetas-cemitério, nos quais existiam populações antigamente, foram deixados para equipes incompletas. Não precisa pensar que isso foi um gesto de bondade. Um planeta sem vida é menos perigoso do que um planeta com vida que sobreviveu à Onda. Nos planetas com vida bactérias às vezes sofriam mutações terríveis. Acontecia às vezes de uma pessoa se tornar um monte de líquido fedido na frente dos olhos dos amigos. De acordo com o sorteio nós ficamos com Menta e a Terra sobrou para Charles e Edith MacCol. Na terra caiu neve preta. Neve como qualquer outra, mas preta que nem carvão. Não tentem achar uma explicação para isso. Onda é onda. Quando os MacCols aterrissaram na Terra, a atividade do sol voltou para o nível anterior e os oceanos no equador começaram a se derreter. Água, ao derreter, se tornava transparente e ao resfriar se tornava um gelo qualquer. Não sei se sobrou algum tipo de organismo primitivo na Terra, mas os corpos nas cidades foram bem conservados. MacCols não conseguiram transmitir os resultados das análises. O shuttle deles caiu quando eles tentaram voar para a pátria deles, na Austrália. Possivelmente, isso foi um acidente qualquer. Os MacCols eram boas pessoas. ----------------------------------------- - ...Jogaram no lixo! Jogaram no lixo um planeta destes! Vocês poderiam se tornar deuses! Próximo passo da evolução! Sociedade dos telepatas! Sem mentiras, sem violência! Paraíso na terra! E vocês?.. De volta para as palmeiras? Vocês são muito canalhas! - Para! Aonde você está indo? - Não te interessa! Jogaram tudo no lixo... A voz quebra e tudo embaça nos olhos suspeitamente. Eu não chorei nem quando enterrava a Estrelinha. - Ignat, para! Você não pode ir! Vocês não pode encontrar os outros munts! - Vai se ... - Deus! Pelo menos nos deixe morrer em paz! Surpreso, até paro. - Repete. - Você sabe o segredo. A partir de você ele se espalhará. Nós somos telepatas. Todos ficarão sabendo. É bom perder a esperança? Toda a vida por nada, tudo o que foi feito, para onde estávamos indo - desnecessário. Isso é o fim de tudo, fim dos ideais da vida. Ninguém agüentará isso! Você não pode fazer isso com a gente. Silêncio na cabeça. Fiesta tem razão? Tem razão, obviamente, mas alguma coisa não está certa. Só preciso me concentrar... - Você tem que ficar aqui, na minha tecnocasa - suplica ela. - Eu darei um jeito em tudo, conversarei com todos. Horst trará a Bichinho até aqui, Veda entenderá. Talvez de um jeito errado, mas entenderá... Entendo! Viro de costas e vou até o helicóptero. - Para! Para, maldito! Flatter, detenha-o! A frase não terminou quando eu pulo até o ciber, tiro a capa protetora com a mão direita e aperto o botão vermelho de desativação com a esquerda. Flatter para como um monumento. Levanto do concreto, coloco os dedos machucados na boca. - Não se preocupe. Daqui a um minuto ligarei o seu ciber novamente. Só pensa antes se você está disposta a matar alguém. Você alguma vez na vida já viu como uma pessoa com garganta arrancada fica mexendo as pernas? - Eu não quero matar! Mas tenho que deter você. Em nome de todos nós, em nome do futuro! - Qual futuro? No qual vocês roubam os filhos dos degs e os educam para se tornarem estupradores e castradores? E chamam isso com palavras altas de "correção genética"? Qualquer maldição pode ser justificada enquanto ela tem sentido. Qual é o sentido desta correção? - Você não entenderá - diz Fiesta com voz condenada. - Obrigado, querida! Sabe como esta frase se chama? Último argumento dos tolos. - Mas você não quer nem escutar - quase chora Fiesta. - Explica. - Se nos mantermos como humanos. Esperarmos. Agüentarmos... Manter a base da civilização. A qualquer custo, até... Ah, você não entenderá... - Até... o quê? - Vocês não são os únicos da Elite... Nossa colônia está em todos os mapas estelares. Chegou a hora. Depois de você podem aparecer outros... Um pouco de sangue limpo - e conseguiremos nos levantar. Uma ou duas naves... - Não terá mais naves por aqui. Nós deixamos uma mensagem, dizendo que íamos aterrissar aqui, por isso os outros irão até outras estrelas. A estratégia da Elite Estelar é jogar a rede de colônia pela galáxia de um jeito maior, sem se concentrar num lugar só. - Você não quer me entender! E na verdade, será que eu quero? Não. Vulcãozinho teria ficado chateada. Ela cantava nas noites: Me ajuda a atravessar Maidan Ele respira com batalhas, lágrimas e risadas As vezes ele não se escuta Me ajuda a atravessar Maidan Agora no lugar do silêncio dolorido na cabeça, som baixo de acordes de cordas de guitarra. Por você, Vulcãozinho, eu tentarei entender. - Você quer um milagre. Deus de máquina. Não existem milagres neste mundo! A Onda existe, milagres não! - Ligo o ciber e vou indo em direção ao helicóptero. Com uma indiferença espero um tiro nas costas. Se tiver um tiro - irei até a Estrelinha. Se não tiver, vou sair voando daqui. De qualquer jeito saio ganhando. Me ajuda a atravessar Maidan Com meu amor, com dor de veneno Aqui estão os dias da minha glória e insignificância Me ajuda a atravessar Maidan Me ajuda... Oceano de Maidan Tropeçou, segurou e carregou na neblina Quando ele caiu morto, em Maidan... Nem tinha campo, onde acabou o Maidan. Não tem tiro. Sento na poltrona esquerda e levanto a máquina no ar. Na rocha da pista de decolagem está parada, de joelhos, uma figura feminina. O vento da hélice fica agitando o cabelo dela. Quem criou você, Onda? Não voltei para a tecnocasa da Veda. Não a queria ver acabada e esmagada. Talvez depois... Deixe que ela permaneça na minha memória como valente e independente. Agora eu tenho que me encontrar. Refazer dos destroços. Parei numa praia de mar ao lado de uma tecnocasa abandonada. Aquela mesmo que eu já tinha escolhido há muito muito tempo. A casa está em um estado deplorável. A floresta chega a encostar na casa, as raízes destruíram o asfalto dos caminhos. Territórios subterrâneos estão cheios de águas de chuva, com sujeira e plantas nas paredes. Tempo previsto para restauração: um ano. Não tem problema. Não estou com pressa. Não vou morrer de Fome. Neste planeta é impossível morrer de fome - e o resto não é perigoso. Bem perto da casa, numa rocha, fica apontando para o céu o prato do rádio-localizador. Bem pequeno - apenas quinze metros de diâmetro. Difícil dizer para que ele era utilizado. Talvez para comunicações espaciais dentro do sistema, talvez para navegação ou para detecção de cometas perigosos e asteróides gigantes. Ou talvez, para tudo isso ao mesmo tempo. A duzentos metros da praia se encontram ruínas de um hangar leve. Embaixo do telhado caído claramente percebe-se alguma construção com asas. Desci para o hangar quase que correndo, achei uma brecha, entrei. Isso era uma nave passageira. Gigantesca, um dia luxuosa máquina para trezentas-quatrocentas pessoas. No hangar tinha espaço para mais três iguais. Colonizadores sonharam em viver com gosto e tamanho. Mostrar para eles mesmos e para os outros: o planeta deles não é um fim do mundo, mas um jardim bem cuidado, talvez até um jardim do paraíso. Andei entre as fileiras das poltronas cobertas por poeira, entrei na cabine dos pilotos, encostei no que sobrou do vidro dianteiro, mexi no manche... Por algum motivo eu esperava encontrar um shuttle. Logo na primeira noite eu subi numa escada enferrujada para o prato do radio-localizador e fiquei sentado por muito tempo na borda, balançando os pés para baixo. No "prato" era para ter um lago pequeno, mas bem no centro, embaixo do impulsor, tinha uma porta. Através da qual eu acabei entrando aqui. Como eu podia errar deste jeito... "Tem montanhas, mas tem oceano também". Esses lugares têm a beleza do paraíso selvagem. Para quem gosta. Eu não gosto. Já estou enjoado de tudo isso. Como aconteceu que eu, que não entendo nada de genética, acabo sabendo mais do que os profissionais locais? Munts perdem os conhecimentos, o mundo está degradando... Ficar por aqui até ficar velho? Ou voltar para a Veda? Ela vai ler instantaneamente todos os segredos do meu cérebro. E o que fará depois? Vai julgar o próprio povo. Eu não estou nem aí, mas ela é confiante... Liana dizia isso. Foi só ela bater as botas que a opinião dela passou a importar muito para mim. Que diferença faz?! Será que eu não conheço a Veda? Ela vai parar com as castrações. Parará com os seqüestros das crianças. Não sei como, mas ela conseguirá fazer isso. E depois? Onda de suicídios entre os munts. E depois? Uma ou outra geração e os munts deixarão de existir. Eles simplesmente não irão mais querer ter filhos. Degs logo esquecerão como tratar os campos, irão para as florestas e se juntarão com os peladinhos. Contaminarão os peladinhos com a mutação deles e umas dez gerações depois começarão a ter pele e subirão nas árvores. Não terá mais munts, nem peladinhos, nem degs. Fim do espetáculo... E se eu não voltar para a Veda? Meu filho irá nascer. Veda treinará um ranger a partir dele. Munts aguentarão mais umas dez gerações. E verão como as pessoas se tornam macacos. E depois? Mesma coisa... Esta civilização se esgotou. Daqui a uns dez milhões de anos a evolução talvez precisará de inteligência novamente. Mas não daqui a cinqüenta mil anos, como pensa a Fiesta. Não sobrará nada da cápsula de tempo dela. Me ajuda a atravessar Maidan Onde todas as canções já foram cantadas e tocadas Simplesmente entrarei no silêncio e desaparecerei - como se não existisse Me ajuda a atravessar Maidan Então vivemos à toa? Tudo à toa? Cinco anos de treinamentos, cinco anos de vôo - jogados fora? Estrelinha e Vulcãozinho morreram à toa? Soco o metal e não sinto a dor. E de onde ela iria aparecer? Com soco direto na Terra eu chegava a quebrar tijolos. Preparado, droga! Para brigar a soco no espaço. Contra a Onda... O que eu posso fazer sozinho? E, se não for eu, quem? Munts? Degs? Bichinho, grávida com meu filho? Grito que nem animal e vou rolando pelo metal frio. Não tem lágrimas. Acabaram. Desaprendi a chorar. Mesmo antes da Nadezhda ter morrido. Naqueles dias e noites quando estava parado de joelhos na frente da cápsula de anabiose da Estrelinha. No céu, uma atrás da outra, vêm acendendo as estrelas. Alheias, inúteis, inúteis para qualquer coisa. Olhos frios do Universo. Uma dela focalizou um pedaço da Onda e as nossas garotas deixaram de existir. Eu as odeio, fico lembrando do rosto de cada. Para me vingar. Olho nos olhos delas, até o oriente começar a ficar mais claro. "Todos dizem: não existe verdade na terra. Mas não existe verdade nem acima dela". Não tenho mais amigos, mas tenho inimigos. Então - está cedo demais para pensar em morte. Você está me escutando, Onda?! Com os primeiros raios do sol eu levantei, abrindo as pernas, na borda do prato do localizador. Tirei a jaqueta, estiquei a mão e passei a faca logo embaixo do joelho. Gotas vermelhas começaram a bater nas placas metálicas. Isso é um juramento. Sem palavras, mas com sangue. Na frente do mar, da floresta, das rochas. Na frente deste planeta maldito. Os munts não conseguiram. Agora é a minha vez. Eu seguro nas minhas mãos o destino deste mundo. Em nome da Estrelinha, da Nadezhda, em nome de todos que nos preparavam para o vôo. Em nome de todos que enfrentaram a Onda na terra e no espaço. "Nós somos sortudos" - dizia Bonus. Se eu conseguir reviver este caixão com música, isto se tornará realidade. Poeira nos radiadores. Ela os cobre como um cobertor grosso, atrapalhando a refrigeração. Luzes verdes de um osciloscópio. Programação interminável de um equipamento recém-montado para verificação dos contatos elétricos diferentes do padrão. Contatos oxidados. Parafusos soltos. Placas soltas. Cristais queimados nos esquemas elétricos. Vazio, sem ROM. Antiguidades. Coisas velhas locais. Nascimento da eletrônica... Cabos de calor que perderam a hermeticidade. Líquidos magnéticos com propriedades alteradas. Ferrugem que encobre as caixas dos radiadores. Uma semana depois eu chutei a porcentagem do trabalho já feito e voltei a pensar. Ativei o Caifora e o mandei fazer as tarefas mais primitivas. Os cibers da Fiesta são bem treinados. A primeira tarefa do Caifora (com minha ajuda, obviamente) foi o conserto da bomba de água para tirar a água do subsolo. Depois ele começou a limpar a casa. Deixa ele brincar. Eu levaria meio ano para isso. Ainda durmo no helicóptero. De todos os equipamentos da tecnocasa consertei apenas o sintetizador de comida. Calculei que isso é mais produtivo de que ficar coletando frutas na floresta todo dia. Não liguei o spin-gerador. Joguei cabos do helicóptero até o painel de controle. Assim é mais rápido e eu não preciso de beleza. O importante é fazer o "prato" funcionar. Arrumei a parte mecânica. Faz barulhos absurdos, funciona muito mal, mas consegue mover o prato do localizador para todos os lados, tirando o nordeste. A corrosão naquela direção comeu o suporte do prato. Que seja. Eu preciso da direção leste-oeste. E duas horas de funcionamento ativo. Depois - ela pode até se desfazer em pedaços, não vou precisar mais. A parte elétrica está pior. Todos os equipamentos são únicos. Existe uma regra de ourro. Qualquer equipamento para o espaço deve ser capaz de ser consertado. Aquele que projetou o "prato" não conhecia esta regra... À noite às vezes ligo o computador do helicóptero, entro na rede local dos munts e fico lendo as notícias. O ranger Horst (quem mais podia ser?) acompanhou até a tecnocasa da Liana uma munt chamada Yadviga. Yadviga tem treze anos. A tecnocasa está funcionando novamente. O setor do Tobi foi dividido em cinco partes e anexado aos setores vizinhos. O ranger Robert foi enviado para solucionar uma disputa de territórios entre dois povoamentos de degs. O ranger Donald reportou sobre uma migração de peladinhos (mais de trezentas pessoas) em algum lugar no sul. Munt Kira venceu o campeonato de damas. Parabéns e honras para ela. No setor do ranger André caiu uma ponte antiga sobre o rio. O trabalho dos ranger se tornou mais complicado. Isso é apenas o que parece ser uma informação. O resto são fofocas. Não agüento mais de vinte minutos. Desligo o computador e fico andando na praia. Lugar maldito. Em algum lugar por perto um rio encosta no mar e a água tem uma cor feia e amarelada. Eu escolhi este lugar sozinho, pelo mapa. "Nós somos sortudos" - dizia Bonus. Apenas quatro meses depois descobri que estou num beco sem saída. Não conseguirei arrumar a parte elétrica do "prato". Existe uma regra de ouro dos técnicos: troca a parte quebrada e o resto passará a funcionar por si mesmo. No sentido de que para consertar não é necessário entender todos os detalhes do funcionamento do equipamento. É necessário apenas substituir o bloco defeituoso por um funcional e depois encontrar a peça com defeito nele com calma. Para isso não é necessário saber como este bloco está ligado nos outros e para que ele serve. Se tiver um esquema, uma placa para testes, soldador e uma peça para substituir. No caso do "prato" esta regra não adiantou... Todos os componentes funcionam em separado. O complexo inteiro não. Eu consigo adivinhar o que aconteceu. Aqueles que trabalharam com o "prato" chegaram a modificar o complexo algumas vezes de acordo com as necessidades deles. Anotações sobre as modificações foram perdidas. E eu restaurei a parte elétrica de acordo com os documentos da fábrica. É possível que neste estado ela não seja nem funcional. São necessárias as mãos de ouro, sensíveis, de uma equipe de técnicos profissionais. Fico andando perdidamente pela tecnocasa por uma semana. Caifora, por mais incrível que possa parecer, conseguiu tornar a casa um local hospedável. As salas estão limpas. Nem sujeira, nem teia de aranha, tudo está brilhando, cadeiras estão posicionadas com precisão milimétrica. Algumas não têm encostos, para falar a verdade, mas o ciber não se preocupou com isso. Quatro pernas, suporte - então é uma cadeira! No armário de livros estão posicionados os livros. Todos os cinco. Peguei o da ponta. Aparentemente, este livro estava sujo de óleo. Caifora o ficou limpando por um bom tempo, com máxima dedicação. Uma página após a outra. Limpou o óleo. O livro não está sujando mais as mãos. Infelizmente, ele lavou a tinta também. Páginas semi-transparentes, devido ao óleo absorvido, estão virgemente limpas. - Muito bom - falo para o Ciber. - Agradeço a dedicação. Escutando um elogio, Caifora começa a tocar o "Hino dos Aviadores". Eu não o treinei a fazer isso. Seria a Veda? Não, para ela um ciber alheio é algo santo. Então foi a Fiesta... Por alguns minutos fico lembrando da tecnocasa dela, um mar verde de grama em volta, balcão da torre de controle, antenas do aeroporto... Isso mesmo! Antenas do aeroporto. Tenho que voar até lá. Mas o spin-gerador do helicóptero está fornecendo energia para a tecnocasa inteira. Se eu o desligar, vou ficar sem clorella. Durante uma semana fico consertando o spin-gerador da tecnocasa. Não tem nada de grave com ele, apenas trabalho braçal. Enquanto as mãos estão ocupadas, o novo plano acaba se cristalizando na cabeça. Desligo toda a parte elétrica do "prato", ligo a minha. A minha será cem vezes mais fácil. Eu não pretendo ficar escutando as estrelas. Só preciso de duas funções: locação espacial e comunicação. De acordo com as normas espaciais, a distância é muito pequena. Apenas 500 mil quilômetros - não é uma distância válida para o espaço. À noite fico sonhando com uma mulher. Ou a Estrelinha com os olhos da Veda, ou Veda com mão frágeis e lindas. "Paciente, os sonhos eróticos o atrapalham?" - "Doutor, eu nunca disse que eles me atrapalham". Me ajuda a atravessar Maidan Lá, onde está chorando uma mulher - Estive com ela nos outros tempos Agora passarei por ela e nem reconhecerei Me ajuda a atravessar Maidan Isso cantava a Nadezhda faz um tempo. Agora tudo isso está no passado... Grama. Um mar de grama. Grama doce, com cor de esmeralda... Ondas... O vento vem em rajadas e ondas ficam passeando pelo mar. Dá vontade de mergulhar nelas, mergulhar com a cabeça, tomar um gole deste mar de esmeralda, sentir como ele, grande e refrescante, acaricia a garganta. Não existiam campos assim na Terra. Tão doces e brilhantes! Na Terra o sol queimava as cores. Aqui não tem tempos diferentes, aqui sempre é primavera. Desligo a direção automática. Mexo um pouco o manche para sentir a massa e inércia da máquina. O piloto automático aterrissará a máquina do lado do hangar do qual eu parti e eu acho melhor ficar mais perto da parte habitada da tecnocasa. E porque estou me desculpando para mim mesmo? O motivo verdadeiro é que as mão ficaram com saudades do manche, só isso. Aterrisso de vez. O vento lateral forte atrapalha, deveria ter colocado a máquina contra o vento, mas... Inclinação de leve para um lado, apago a velocidade lateral, regulador passo-aceleração para cima. Arriscando a possibilidade de capturar um círculo de vento em volta da hélice principal, apago a velocidade bruscamente. Passo-aceleração para baixo. Balanço a máquina levemente e a coloco sobre os quatro pontos. Olha só! As mãos ainda lembram do trabalho. Fiesta me enfrenta na pista. Com dificuldade a reconheço numa mulher cansada e de cabelos brancos. - Como você mudou, meu menino. Eu mudei? Engraçado. Vou ter que olhar para um espelho. Enquanto andamos até a tecnocasa, explico o porquê da visita. - Claro, pode desmontar. Pode pegar tudo o que achar necessário - concorda ela. Jantar. Do refrigerador é tirado um corpo de coelho, congelado até parecer uma pedra. Ao olhar como o Flatter coloca uma serra em forma de disco sobre um dos manipuladores, eu mesmo passo a servir a comida, verduras e frutas. Diluo o álcool com refrigerante verde. Ao mesmo tempo explico o que são batidas e como são feitas. O jantar se passa num ambiente amigável e quente. Fiesta está feliz em me ver. Não, não é essa a palavra certa. Se sente como se uma pedra tivesse saído de cima da alma? Mais perto, mas ainda não é isso. Volta do filho prodígio para casa - festa para a mãe. Alguma coisa por aí. Noite maravilhosa. Ficamos falando sobre besteiras, sobre a mutação das frutas sob a influência da Onda, sobre o campeonato futuro de Go, sobre a perspectiva de domesticação dos gatos selvagens, sobre propriedades radio-protecionais (quais-quais? - R-radio-protecionais!) do álcool puro. O meu organismo desacostumou muito rápido do álcool... Antes de chegar num estado porco, paro de beber, ajudo o Flatter a limpar a mesa e vou até a minha sala. Tudo de bom para a sua alma, Fiesta. - O que vamos fazer com um marujo bêbado?! - estava pensando que cantava em voz baixa e percebi que estava berrando. Bonus gostava desta música e a Vulcãozinho sempre ficava brava: "Marujo bêbado vai dormir num tapete na frente da cama!" Olho no espelho de manhã. Fiesta tinha razão. Eu mudei. O problema principal nem é o fato de eu ter pêlos quase como um gorila. Tenho tantos pêlos que nem dá para ver as cicatrizes. Eu fiquei com cabelos brancos também. Não tantos quanto a Fiesta, apenas até a cor de pele de rato. Mas eu não tenho nem trinta anos e ela tem mais de cinqüenta. Pego uma tesoura e corto cuidadosamente o cabelo e a barba. Mais uma vez encontro no espelho a cara queimada e pintada de um Frankenstein. Será que precisava tentar melhorar? Existe motivo para voltar para a Veda com a cara assim? Ou os telepatas precisam da beleza interior? Mas por dentro eu não estou melhor. Combinação perfeita da forma e do conteúdo. Me animando assim e tomando um galão de líquido verde com gás, vou estudar a parte teórica. Até o almoço fico folheando no computador modelos de esquemas, após o almoço fico estudando a mesma coisa na versão real. Dá vontade ou de chorar ou de xingar. Eu tenho "prato", aqui tem grades fasicionais. É claro que num aeroporto as grades fasicionais são preferidas... - Ignat, esta parte do plano deixa comigo - diz Fiesta. - Não agüentarão. Eles funcionam dentro da atmosfera e nas órbitas baixas. Até mil quilômetros. Eles não agüentarão quinhentos mil quilômetros. - Tomaremos dois campos de grades fasicionais - e o raio será duas vezes mais preciso. Tomaremos quatro, colocaremos nos cantos de um quadrado com cada lado igual a um quilometro - e o seu "prato" ficará vermelho de inveja. - E... - Eu disse que eu darei conta disso. - Mas... - Vamos calibrar com a ajuda do seu helicóptero. Vá, prepare o problema técnico, cara com pele queimada. - ...temos que conversar. - Eu concordo, concordo. Se você por acaso esqueceu, nós, munts, somos telepatas. Mas não fica assim, fala. - Vamos combinar de uma vez por todas: o que eu penso é problema meu. Somente se conta o que eu falar em voz alta. - Concordo com isso também. Não fica puxando o rabo do gato, fala logo. - Questão de poder... Não teremos democracia. Se você quer participar neste projeto você é apenas um executor. Quem toma as decisões sou eu e a responsabilidade é minha também. A sua voz é apenas para conselhos. Se você concorda, trabalhamos junto, senão - sai para o lado e não me atrapalha. Ok? - Ignat, este projeto é seu e eu vou te ajudar. Mas você ainda não conseguiu imaginar o que a telepatia consegue fazer. Você disse que eu apenas posso dar conselhos. Mas qualquer munt pode convencer você de qualquer coisa. Que os rios correm para baixo e que eles correm para cima, que a Onda existiu e a Onda nunca existiu, que grama tem cor azul e o céu é verde com pontos brancos. - Como assim? - Ajudando com réplicas e direcionando seus pensamentos. Isso é uma arte, mas os munts a conhecem bem. - Todo, sem exceção? - Não - sorriu Fiesta. - Normalmente, apenas aqueles que ajudaram aos rangers a crescerem e os educaram. - E por que você contou isso para mim? - Porque... Você fez uma pergunta difícil. Eu tenho umas dez razões para contar e mais umas duas dúzias para omitir. Você é um rapaz inteligente. Pensa em alguma coisa convincente. É bom quando existe energia até não dar mais. Quando não é necessário re-inventar a roda, fazer milagres e é possível apenas trabalhar. A dez metros na frente da máquina - um lago de terra derretida. Em cima da flecha, esticada para frente e para cima - um impulsor. Eu o balanço, aquecendo o lago uniformemente. Há um bom tempo com a ajuda desta máquina eram criadas pistas de decolagem dos aeroportos. Agora eu preciso de duas planícies planas para colocar grades fasicionais - uma espécie de um rádio-locador sem peças móveis. Desligo o impulsor, fecho a flecha e movo a máquina até o próxima ponto. No total temos oito pontos e eles estão posicionadas em forma de um quadrado. Posição em forma de círculo daria uma eficiência ainda maior. De uns três por cento aproximadamente. Mas existe uma simplicidade convincente no quadrado. "Deixa de ser bobo" - dizia o instrutor na Terra. "Faça de uma maneira simples e robusta. Se for procurar décimos de um por cento, perderá a qualidade". "Que qualidade?" - perguntava eu. "Simplicidade, universalidade e possibilidade de reconstrução". Fiesta fica estudando equipamentos de rádio. Surpreendentemente ela fica parecendo mais nova a cada dia. Não, os cabelos brancos e sobrancelhas cansadas ainda permaneceram, mas ela não abaixa mais a cabeça. A voz ficou mais forte. Apareceu o brilho nos olhos. E eu dei trabalho para ela até o pescoço. Máquina pesada vai indo devagar, com dignidade. A cabine está tão alta que fica parecendo que estou voando num helicóptero na altura baixa. Rodas com pneus de baixa pressão são quase duas vezes mais altas do que eu. Navio dos campos e não uma máquina. Quando terminar tudo, sentarei nela, colocarei uma bandeira de solidão e irei para o oriente. Fixarei o manche e a deixarei andar para a frente. Para onde Judas perdeu as botas. Que nem a Corina - entrou num rio e nadou para o desconhecido... Opa! Aqui estão os marcadores. Ponto número 3. Abro a flecha completamente, ligo o impulsor por alguns segundos e faço um círculo com ele. Estou queimando a grama. Senão tudo em volta pegará fogo, que nem no primeiro ponto. Os marcadores de madeira pegam fogo que nem tochas. Espero a grama terminar de queimar e ligo o impulsor novamente. Os cinco primeiros minutos quando a terra molhada está queimando são os minutos mais difíceis. Nenhuma máscara salva da fumaça amarga e tóxica. Devagar, mas uma planície preta se torna um lago quente de terra derretida. Uma panela infernal. E eu sou o cara que coloca carvão embaixo da panela infernal - logo quem? Ele mesmo. Com cara feia e horrível. E não tem nenhuma moralidade alta no meu projeto, não mais do que no projeto dos munts. Se bem que tem alguma espécie de justiça pervertida nisso. O tempo todo fico lembrando de uma piada sobre inseminação artificial das vacas: quando as vacas, após receberem um presente de uma cápsula, ficam em volta do veterinário - "E um beijinho agora?". Veda agora fica me mordendo enquanto a gente faz amor. Interessante, ela sente a minha dor. Pervertida? Se bem que ela sente os meus pensamentos também. Talvez ela quer me distrair? Como é complicado com estes telepatas... Assim que o projeto terminar, voltarei até ela, comerei até doer os ouvidos e perguntarei sobre tudo. Agora sim, o ponto número 3 está pronto. Posso ir para o quarto. Mas é melhor amanhã. Se a Fiesta for preparar o jantar, vai acabar sendo uma geléia com água açucarada novamente. É melhor fazer lingüiça verde. Cozinhar com cebola selvagem, com batata, deixada por dois dias na água... Os munts não entendem nada sobre comida. Assim que voltar para a Veda, a primeira coisa que vou fazer vai ser ensiná-la a cozinhar. Não, primeiro a colocarei na minha cama e deixarei a parte de cozinhar para depois. Mas logo no primeiro dia. Fazer comida é coisa de mulher. ... um cubo do lado do outro. Encostar um no outro, eles se juntarão com um CLICK silencioso. Criar deles uma corrente, encostar no campo retangular da grade fasicional já montada. Brincadeira para crianças de jardim de infância. Eu estou jogando no primeiro campo, dois cibers ficam me vigiando, aprendendo, mais dois ficam montando grades no segundo e terceiro campo. Flatter e Caifora, como a elite intelectual, com grandes conhecimentos existenciais, ficam limpando a superfície do próximo campo. Devia ter montado a grade à noite, no frio. Colocar dois ou três móveis de bombeiros, ligar os faróis e teria a mesma luz que durante o dia. Este trabalho nem para um ciber é, é para um macaco. Colocar o cubo com lado baixo para cima, verde para direita, laranja para a frente, encostar. Próximo... - Ignat, descansa. Vá até o rio, nada um pouco. - Um destes já acabou indo um dia. Agora a Bichinho está grávida. - Você é um avestruz. Se esconde do mundo no trabalho. É verdade que os avestruzes ficam escondendo a cabeça na areia? - Dizem... "Não assustem os avestruzes, o chão é de concreto" - adorava dizer a Vulcãozinho. - Não atrapalha o processo, deixa os cibers trabalharem. Eles farão mais rapidamente. No segundo ponto já temos metade da grade montada e você só fez um quarto até agora. Isso, obviamente, é convincente. Levanto dos joelhos, saio do campo, tiro a camisa molhada e me deito na grama com cor de esmeralda. Olhando de fora ela parece ser mais fresca. Na verdade, não é nem um pouco. Dura, estridente, queimada por sol. Sobre o campo dá para ver o ar quente de longe. O ciber toma o meu lugar. Fica analisando os primeiros cubos por um bom tempo, vendo por todos os lados, mas logo atinge uma velocidade rápida. Cubinhos ficam fazendo barulho como num jogo de damas rápido. - Ignat, quando você se tornará um ser humano? - Olha só. E quem sou agora? - Um autômato. Um ciber maldito. - Por que maldito? - fico bravo e pergunto, preguiçosamente. - As garotas não se jogariam em cima de um maldito. - Filho da mãe!.. Nós somos telepatas afinal. Será que preciso explicar? Por que os telepatas caem em cima de um ciber maldito? É atrativo e simpático? Eu? Engraçado. Por que me amar? Será que pergunto? - Quem disse que alguém te ama? Ficam com dó de você, querem ajudar, limpar a tristeza. Porque a Bichinho acabou parando na sua cama? É impossível ficar por perto quando você fica lembrando da sua mulher. Credo, qualquer mulher se deitaria embaixo de você só para você parar de rasgar a alma. - Obrigado, querida, você sabe como ajudar. - Não se apresse. É apenas a introdução. A conversa de verdade ainda está por vir. - Desencana. Não atrapalha o túmulo. Assim que eu terminar o trabalho irei para a neblina e vou parar de mexer com o cérebro de vocês. - Você só pensa nisso. Como um ciber. Escolheu um ponto no horizonte e fica indo até ele como um tanque. Quem não sair do caminho acabou sendo atropelado e você nem percebe. Olha em volta! Você tem apenas uma vida. Você vai acabar arrumando os parafusos pelo resto da vida assim? Olha só para o céu. Ele é alto e azul. Para a floresta, para a grama, só olha. Você mesmo se joga na tristeza pelo trabalho. Esqueceu todas as palavras humanas. "Mais, menos, mais rápido, mais lento, refração, interferências...". E a palavra "bondade" -- você lembra dela? Minhoca tecnológica! - Eu sou um rei.. um escravo.. um verme.. eu... Não chuta um cachorro morto. Tudo bem? - Acorda, criatura! Se torna um humano novamente! - Não quero. - ... Você sabe o que eu quero perguntar. Nos fones de ouvido permanece um silêncio por um bom tempo. - Ignat, eu concordaria em ter uma filha com as duas mãos, mas a idade... Por que justamente menina? - E outros munts? - Não se preocupe quanto a isso. Inseminação artificial, controle genético rígido - tudo isso já aconteceu na história deste mundo. Você não inventou nada de novo. Então está ótimo. Bato olho no painel de controle e tiro um livro do bolso. Interessante, como será que a Fiesta fica matando o tempo? Para falar a verdade, estamos calibrando os elementos da grade fasicional. Eu levanto no helicóptero para a altura de quatro mil metros, Fiesta aponta um medidor a laser e detecta a distância até o refletor fixado no helicóptero com a precisão de décimos de milímetro e tudo começa... Primeiro calibração dos quatro impulsores, colocados nos cantos da grade fazicional. Na teoria isso é fácil. Os impulsores emitem um impulso ao mesmo tempo. Os equipamentos do helicóptero detectam o tempo entre a chegada do primeiro e do segundo sinal com a precisão de picossegundos. Os dados de distância e todos esses números são armazenados no computador. Depois eu coloco a máquina num novo lugar e tudo se repete novamente. Como resultado podemos descobrir a posição relativa entre todos os elementos da grade fasicional e os atrasos cometidos pela parte elétrica. Estes atrasos são pequenos, mas a identificação deles permite aumentar a precisão significativamente. Segunda etapa. Os impulsores de cantos são considerados os principais e todos os outros são calibrados em relação a eles. Mesma coisa, só que a parte matemática é mais simples. Mas todo o processo leva horas. Porque existem mais impulsores na grade fasicional do que pêlos num tapete. Centenas de milhares. Nisso se encontra o problema principal - fazer com que todos eles funcionem de maneira sincronizada. Calcular e colocar no computador que controla a grade fasicional correções individuais de cada um deles, para que o computador possa corrigir o funcionamento do impulsor. Um trabalho necessário, mas tedioso ao extremo. A minha tarefa é colocar o helicóptero num ponto específico, ligar o piloto automático e ler quadrinhos que têm mais de trezentos anos. A tarefa da Fiesta é apontar o medidor de distância para o helicóptero, apertar o botão no computador e ficar olhando para a tela com a cara de tédio, vendo se tudo está correndo normalmente e quanto falta para terminar tudo. - Ignat? - Sim. - Você disse alguma coisa para a Veda sobre o seu projeto? Na rede existem muitos boatos, um mais criativo do que outro. - Não falei nada para ninguém. E também, ninguém sabe onde estou e o que estou fazendo. - Bobo. Todos sabem que o Jogador de Pedras viveu na tecnocasa da Sombras. Agora a tecnocasa tem um novo nome: Palácio do Eremita. Todos sabem que você está consertando uma antena espacial. - Palácio de quem? - Eremita. Eremita significa "o isolado". Você não é da terra? Não conhece as línguas terrestres? - Não sou um poliglota. Como todo mundo ficou sabendo sobre a minha antena? - No nosso mundo não existe tanta gente assim para que alguém pudesse se perder. Algum dos rangers viu para onde voou o seu helicóptero. Outro acabou passando por lá para ver o que acontecia. Alguém viu como o seu helicóptero voou até a minha tecnocasa. Veda avisou a todos que você não ficaria feliz em ter visitas, por isso ninguém nós atrapalhará. Mas toda a rede está morrendo de curiosidade. - Você disse alguma coisa para os munts? - Apenas que você está ocupado com as coisas de sempre. - E... Veda não disse nada? - Ah meu Deus! Se você está perguntando da Bichinho, a gravidez dela está correndo bem. Se quiser, posso chamar a Veda agora para você mesmo conversar. - Não, não precisa. - ... Cruze os dedos, vamos começar. Fiesta sorriu e, para minha surpresa, cruzou os dedos dos pés. - Agora fica quieta. Sua voz não está gravada no ciber-cérebro. Ligando o microfone eu, com todos os detalhes, explico para o ciber-cérebro da nave o esquema da manobra de alteração da órbita em dois impulsos. Nos casos comuns seria suficiente apenas uma frase: "Troca para uma órbita circular com altura de mil quilômetros". Mas eu sou um "sortudo". Se um dia eu escolher um símbolo para mim será um caramujo. Pelo modo de agir. No hangar da nave tem três shuttles em uma fileira. O primeiro é jogado pelo portão esquerdo e o terceiro pelo portão direito. O segundo shuttle fica no centro, e não tem nenhum portão próprio. Eu e o Bonus aterrissamos no primeiro shuttle. Agora o lugar dele está vazio e a centralização da carga está prejudicada. Para a recuperar, ou é necessário mover o segundo shuttle no lugar do primeiro, ou se desfazer do terceiro. Mas não deu certo mover o segundo shuttle no lugar do primeiro. O comando chegou até bordo, mas não funcionou. Se eu estivesse na nave, conseguiria arrumar em dez minutos. Muito provavelmente algum suporte ficou preso. Um par de marteladas - e só... Agora tenho que me virar, inventar soluções. É melhor jogar para fora os dois shuttles. Nave mais leve tem mais chances de aterrissar com sucesso. Mas para isso é necessário ter uma pessoa a bordo. O ciber-cérebro não executará este comando sem a confirmação da sala de controle. Problema sem solução, diriam vocês. É impossível controlar uma nave com o centro de massa deslocado. Sim, o ciber-cérebro não suporta isso. Mas eu mandei orientar a nave contra o vetor de velocidade no ponto da manobra e girar a nave em volta do eixo. Efeito de giroscópio. Mesmo com o centro de massa deslocado, a nave manterá a orientação do eixo durante a manobra. O comando passou e nada mais depende de mim. Fiesta por algum motivo liga a música. - Desliga. Fica batendo nos neurônios. - E você para de batucar na mesa então. Coloco as mãos nos bolsos. Me levanto e fico correndo em volta da sala de controle. Droga, nunca percebi que os painéis de controle foram tão mal posicionados! Agora vou ficar com joelho machucado. - Acalma-se, apressado - a Fiesta tenta me acalmar. - Quer um sanduíche? - Que droga de sanduíche? Pão deve ser mais escuro. Entenda, escuro e não verde. E lingüiça - vermelha. Eu vomitaria de comer tudo verde ainda na Terra. - Master, com mãos de ouro, foi você quem configurou o sintetizador. Eu te deixei entrar na sala santa - na sala do sintetizador da comida - e o que eu escuto? - Não sou um artista. Eu fiz o gosto? Fiz. Cor - me desculpa. - Como vou saber qual é o gosto verdadeiro do pão? Nunca comi um de verdade na minha vida. - Acredita na minha palavra. Se quiser, posso jurar em nome do cachorro favorito do Napoleão Bonaparte. - Tudo entendido. Você não é um artista, mas você é guloso. - Gourmant. - O come-tudo! Enquanto estamos conversando, Flatter traz um prato de sanduíches verdes e coloca na minha frente. Automaticamente começo a comer o de cima. Pelo gosto - pão com mortadela. Pela cor - sujeira de pântano. De repente lembro que, com o meu comportamento, acabo destruindo a minha própria tese. - Come, come, teórico! - sorria Fiesta. - Até a manobra ainda faltam sete minutos. - E você? - Estou de regime. Nesta conversa descuidada o tempo passa rápido. Nós nem conseguimos discutir a técnica de pintura do grande Leonardo, quando chega um relatório do bordo da nave. A primeira manobra ocorreu bem. Perigeu estimado - 1100 quilômetros (no lugar de 1000), parâmetros da órbita ainda estão sendo definidos. - Pronto! Vamos descansar. O resto saberemos amanhã. Nada depende mais de nós. A segunda manobra vai demorar bastante. E, além disto, fora da área visível pelo rádio. Com o primeiro o cérebro deu certo e estas ferrugens aprendem rapidamente. - Ignat, freia ele! Ele não poderá aterrissar com o centro de massas deslocado. - Não poderá. Com deslocado - de jeito nenhum. Bonus conseguiria. Ciber-cérebro - não. Percebo que fico batucando com os dedos na mesa novamente. - Não se preocupe, Fi. Tudo correrá bem... - ...Por que esta cara triste? - Acaba saindo meio mal. Acontece que se a nave passar em cima da costa durante o dia, ela passará em cima de nós à noite. - Não vejo problema nenhum. - Eu gosto de dormir à noite. - Se quiser, eu posso ficar de vigia no seu lugar. Só me explica quando que tenho que apertar o botão. - Assim que a nave passar em cima de nós. Para que ela não pudesse aterrissar nesta volta, mesmo que fosse frear a cinco "g"s. É melhor você ficar de vigia aqui comigo e, se eu dormir, me acordar com chutes. Fiesta dá risada. Risada meio nervosa. A última semana inteira nossa está nervosa. Qualquer detalhe pequeno que der errado - e é o fim do projeto. Fim do planeta inteiro. - Chega de filosofias. Você não entende a força da evolução - a Fiesta me interrompe. - Não é o fim, apenas um atraso. - Por uns dez milhões de anos. - O que dez milhões significam para a evolução? - E se acontecer uma segunda Onda? Para nós faltaram cem anos apenas. Mais uns cem anos e não daríamos a mínima para esta Onda. Esperaríamos ela passar na galáxia vizinha depois voltaríamos. É possível discutir sobre a onda indefinidamente. Que nem sobre o tempo. E essas discussões não discutem nada. - Vamos dormir, Fi. Trabalharemos hoje à noite. A nave passará em cima de nós às quatro de manhã. Pela última vez fico analisando tudo em mente. Tudo está previsto. O vento sobre a costa estará em direção à praia, a nave não será levada para o oceano. Qualquer coisa, lá não é muito profundo. Afundarei o setor dos motores e a nave deitará sobre o solo. - Falta meia hora para a ultrapassagem - informa Fiesta. Agora ela está coordenando. Na minha frente tem apenas um botão. Grande e vermelho. Eu desenhei uma caveira com ossos em volta dela. - Nave no localizador - informa Fiesta. Olho para a tela. Sinal forte e claro. Tudo em ordem. - Nave em cima de nós - próximo relatório. - Nave se aproxima do limite da área... Nave na área. Espero por mais um minuto e aperto o botão vermelho. Na nave chegou um sinal de SOS. O ciber-cérebro fica calculando milhares de opções, mesmo tendo apenas uma na verdade. O comando de aterrissagem tem prioridade máxima. E a possibilidade de sucesso - zero! Devido ao shuttle número três. Sinal SOS tem a mesma prioridade. Essas são as duas limitações da decisão. A terceira limitação são as leis da mecânica do céu. Vai... - Tem separação - grita Fiesta. - O ponto no localizador se separou! E ao mesmo tempo escuto a voz do ciber-cérebro nos fones. A nave informa que de acordo com o sinal SOS o shuttle número três será jogado para o planeta. A aterrissagem do shuttle acontecerá na próxima volta. - Deu certo! Conseguimos! Ignat, você é um gênio! Fico examinando as unhas com tédio. Ou melhor, aquilo que cresceu no lugar das unhas na mão direita. - Temos uma hora e meia para sair daqui. - Como assim - sair? - O shuttle não poderá aterrissar. Ele explodirá ao aterrissar. Ele tem recursos energéticos colossais e teremos uma explosão colossal por aqui. A explosão destruirá tudo em volta, sobrará apenas um buraco enorme. - Você não pensou nisso... Tem certeza que explodirá? Eu dou uma risada torta. - Ele tem quinhentos anos. E ele foi consertado levando em conta apenas vôos no espaço aberto. Nós não restauramos o recursos dos sistemas de aterrissagem. Assim que ele soltar as rodas... Tentar soltar as rodas... Eu e o Bonus demos um curto-circuito nos sinalizadores para que os testadores não reclamassem. Não tem nem cabos hidráulicos por lá, nem suportes. - Leva ele para um lado, joga no oceano. Nós não precisamos dele para nada! Faça alguma coisa! - Impossível. O shuttle está indo de acordo com o sinal SOS. Este programa tem prioridade máxima. Ele tentará aterrissar na pista de decolagem. - Maldito! Canalha! O que você está fazendo?! Aqui em volta é a minha pátria. Aqui os meus pais moraram... Eu posso ser um maldito, eu posso ser um canalha. Mas eu tive que testar o ciber-cérebro com a pista de decolagem do aeroporto. Eu tive que juntar todos os fatos, um atrás do outro, para que ele não tivesse nenhuma alternativa. Para que a única solução fosse jogar o shuttle para fora - e restaurar o centro de massa da nave assim. Um ponto de aterrissagem mais próximo para a fonte do sinal SOS é a pista de decolagem do aeroporto. Ela não serve para a nave, mas é perfeita para o shuttle. Possibilidade sólida. E ela funcionou. Então, eu tinha razão? Não sobrará uma pedra da tecnocasa. Mas esta casa já fez o que devia ter feito. O que é mais importante, afinal? Uma tecnocasa ou um planeta??? - Eu vou juntar as coisas - diz Fiesta com voz sem vida. - Empresta Caifora por um tempo. - Caifora, atenda às requisições do munt Fiesta. - Entendido - responde o meu ciber. - Caifora, Flatter, me sigam - chama ela e o trio se afasta. As minhas coisas são só um par de roupa suja e ele está no helicóptero. Vou verificar a máquina. Inicio os testes, escuto o relatório do piloto automático, coloco a rota por precaução. Sento no degrau mais baixo e espero. Chega Caifora com duas caixas nos manipuladores. As coloca aos meus pés e fica esperando como uma estátua. - Quando a Fiesta chegará? - Informação será dada daqui a vinte e cinco minutos. Olho para o ciber, surpreso. A pergunta era para ser retórica. Daqui a vinte e cinco minutos faltarão apenas quarenta minutos para a chegada do shuttle. Em quarenta minutos eu conseguirei correr a uns dez quilômetros daqui. Ou voar para cento e poucos. Não preciso ir tão longe. Posso voar uns trinta quilômetros e me esconder atrás da montanha mais próxima. O tempo passa. - Fiesta pediu para informar que ela ficará no depósito de livros. As paredes são resistentes, elas agüentarão a explosão. Você deve sair voando. No tempo restante você não poderá abrir os portões. Por alguns minutos fico procurando por uma saída. Se é possível sobreviver em algum lugar, este lugar é a cápsula de tempo. Fiesta ganhou de mim. Quis ficar com os livros dela. Compartilhar o destino deles. Fanática! Tiro a tampa das caixas que o Caifora trouxe. Obviamente, ambas estão fazias. - Caifora, entra na cabine! Coloco o helicóptero perto dos portões do depósito dos livros. Os portões estão trancados. Se eu os explodir - tem outros atrás. Não terei tempo... E se eu os explodir, com certeza eu vou matá-la na explosão. Ela previu tudo... Levanto o helicóptero no ar e na velocidade máxima vou até a montanha conhecida. Vou correndo até o topo, escolho um lugar, me deito, preparo binóculos. A tecnocasa está perfeitamente visível. O shuttle aparece bem na hora certa. Qualquer piloto diria que tudo está correndo bem. Mas de repente a máquina bate com nariz no chão, cai sobre a pista de decolagem e fica escorregando por ela por muito-muito tempo. Eu começo a ter esperança de que tudo pode dar certo quando a máquina se transforma numa bola de fogo. Os vidros do binóculo se tornam escuros instantaneamente, protegendo os olhos. Mas mesmo assim consigo ver como um cogumelo enorme cresce sobre a tecnocasa, como caem os prédios, como dobram, como se fossem feitos de papel, as paredes do hangar dos helicópteros... Daqui a dois-três minutos chega a onda sonora da explosão. Mas nessa distância ela não é mais perigosa. Não tem radiação. O spin-gerador do shuttle explode no nível sub-crítico. Uma onda leve de raio X - e só. Se o spin-gerador da nave tivesse explodido, teríamos a coleção completa: raios alpha, beta, gamma, isótopos de vida curta e outras delícias de uma explosão atômica. Não tem muita coisa para queimar também. Contacto o ciber-cérebro da nave e cancelo o alarme de SOS. Coloco o helicóptero na frente dos portões do depósito de livros. O primeiro portão está empurrado para dentro pela explosão. Nem preciso abri-lo. - Caifora, luz! Corro até segundo portão. Caifora, iluminando o caminho, me segue. Os portões estão intactos e até se abrem devagar. Arriscando a perder os ouvidos, coloco a cabeça para dentro. Flatter fica girando o gerador manual de eletricidade. - Fiesta! Dentro tem apenas um iluminador aceso. No telhado e na parede tem um trinco com a largura de uma mão. - Fiesta!!! Perdendo os botões, passo pelo portão. Caifora fica me esperando do outro lado. A passagem é pequena demais para ele. Ela está deitada com a cara para baixo do lado da parede. Um pedaço de concreto entra no corpo embaixo da costela direita. Olhos se abrem devagar. - Acidente... - ela começa a tossir. Sangue preto está nos lábios. - É apenas um acidente... Não fica se culpando... Arranco a minha jaqueta, rasgo a camisa em linhas compridas. Na luz verde o sangue parece ser preto. - Caifora! Caixinha de primeiros socorros do helicóptero! Rápido! Se eu contar para alguém, ninguém acreditará. Pedaço de concreto... Não existem pedaços de concreto que cortam! Isso não está certo, isso é ridículo. Dá para dar risada. Não sei nem o grupo sanguíneo... E não tenho mais tempo. A nave tem apenas duas voltas para a aterrissagem. - Não mexe... Só acelerará... O pulmão foi perfurado... Eu fico procurando nos bolsos perdidamente. Faca grande, faca pequena, linha, agulha. Pouco. E não tem chances. O segundo pulmão, aparentemente, terá que ser removido. E não sou um cirurgião para costurar depois. "Não tenham medo de sangue" - dizia o instrutor. "Provavelmente, você terão que operar a si mesmos". Tiro do bolso traseiro uma garrafa e limpo as mão com batida de ameixa. Ela tem 70% de álcool. - Ig... kh-h-h-h... Conserta a cápsula. Deixe que os descendentes... - Fica quieta. Guarda as forças antes da operação. Agora o Caifora trará a caixinha de primeiros socorros, colocarei um sedativo e começaremos. - Não dará tempo. Não desista, Ignat. Termina o trabalho... Não fala para as meninas sobre os genes dos... rangers... Elas não precisam saber... Fala para a Veda ficar quieta... Eu... Sincronizados, os dois cibers aparecem correndo. Caifora me oferece uma caixinha aberta de primeiros socorros. - Chegamos tarde, rapazes. Fecho os olhos dela, levanto o corpo nas mãos, levo para o helicóptero. Não tenho tempo para enterrar. Levarei para a minha tecnocasa, colocarei no gelo... Agora tenho que enfrentar a nave. Que estúpido e ridículo - um pedaço de concreto nas costas... Fiz tudo no tempo, preparei tudo. O helicóptero está em cima de uma colina. Daqui tem uma vista ótima sobre o mar e visão perfeita sobre toda a trajetória da aterrissagem. Faltam quinze minutos para o sol nascer, para a nave aparecer na área de visão pelo rádio faltam trinta e cinco minutos. Dou uma volta em redor da máquina, chuto a roda por algum motivo e me deito na grama seca, batida por vento. Fico mordendo a grama, com cor de esmeralda, amarga, seca e dura. Meia hora... Posso relaxar por trinta minutos. Engraçado - os olhos se fecham, mas o coração está batendo com intervalos. Como eu cansei deste planeta... Limpo-limpo estou deitado nas canções do sol que nasce Na frente do nascimento do próximo dia... (O poeta mentiu. O dia nasce, mas a minha roupa está suja de suor e sangue, e eu estou sujo como um porco.) Três irmãs, três esposas, três juizes misericordiosos Arrumam o último crédito para mim Acordo com o barulho maldito de sirene. Do mesmo jeito que a sirene berrava quando a Onda crescia do lado de fora da nave. Pulo na cabine do helicóptero, afasto o Caifora e com palmada de mão sobre o painel de controle desligo o despertador. Foi uma idéia idiota. Agora as mãos estão tremendo. E tenho um pressentimento péssimo... O localizador do helicóptero já encontrou a nave que entrava nas faixas superiores da atmosfera. Daqui a meia hora, o destino deste mundo será decidido. Tem um banco de genes na nave. Aqui no planeta, tem oitocentos munts, oitocentos organismos, preparados para obter e criar um embrião artificial. Aqui tem setecentos rangers, que podem separar peladinhas crescidas e saudáveis, levar até as tecnocasas para a inseminação artificial. E ajudar a educar as crianças. Aqui tem um monte de degs que não regrediram completamente ainda. Controle genético rigidíssimo, inseminação artificial - e daqui a duas gerações teremos uma colônia estável e viva com no mínimo cinqüenta mil pessoas. Inseminação artificial e controle genético já existiam na história deste planeta. A última leva dos colonizadores estragou tudo. Não estou inventando nada de novo. Apenas estou dando a última chance para o planeta. Isso se a nave aterrissar. Se esta lata de ferro velho de quinhentos anos de idade conseguir aterrissar na água em segurança. A nave já está entrando nas faixas mais densas da atmosfera. A nuvem de plasma em torno dela desapareceu e eu posso receber seus dados novamente. Na distância de 170 os controles giratórios do bordo direito falharam. Freios, elétrons, eixo direito - tudo está fora do jogo. Nada demais, ainda não é fatal. Transmito o comando para ligar os motores de orientação. Barbaridade, é a mesma coisa que colocar pregos com microscópio, mas não preciso mais economizar o combustível. Esse é o último vôo da nave. Tem que conservar a telepatia. Atualmente todos estão contra ela. Mas os anos passarão, a civilização no planeta se estabilizará - e lembrarão dela. Eu tenho que criar e manter banco de genes dos telepatas. Dedicarei a minha vida à isso... se a lata velha conseguir aterrissar. Distância cento e dez, altura dezessete mil. Tudo de acordo com o gráfico, com exceção do aquecimento do corpo da nave. Conservante e material para proteger do calor está saindo para fora em camadas. Não fatal. O conservante já fez o papel dele. Transmito o comando para o ciber-cérebro para não economizar o conservante. Distância cem. Brecha no corpo da nave, perda de hermeticidade. Hermetizar todos os setores. Distância oitenta e oito. Falhas no resfriamento do spin-gerador direito. Isso já é sério! Todos os problemas estão do lado direito. Desligar o spin-gerador direito! Alterar a alimentação de todos os sistemas para o spin-gerador esquerdo. Dois minutos e meio... Para desligar o spin-gerador são necessários dois minutos e meio. O resto não é importante. Defeitos pequenos são um mal pequeno. Mas se o gerador explodir, no céu crescerá uma flor magnífica - um crisântemo. Uma flor no túmulo da civilização neste planeta. Dois minutos e meio... - Agüenta! - eu fico implorando. - Em nome da Estrelinha, em nome do Tobi e Bonus, em nome da Liana e Fiesta, agüenta... Para que os livros da Fiesta tenham leitores. Ela deu a vida ela por eles... Dois minutos. - ...Você não deve explodir. Você é a última esperança deste planeta. A esperança não pode morrer. Não pode, não deve acontecer isso, que tudo foi em vão. Tudo por que passamos, tudo, pela morte, sangue e suor, tudo pelo qual eu ainda estou agüentando isso. Agüenta dois minutos - não peço mais nada... Um minuto e meio. "Eu sou a sua Esperança" - dizia Vulcãozinho. Nossa Esperança foi a primeira a morrer. Mexo a cabeça, afastando as memórias. Agüenta, filho da mãe, agüenta, pelo menos em nome dela. Um minuto... 02.03.1999 - 06.01.2000 Tradução: 14.07.2004 - 22.07.2004 (*) O nome desta historia é o nome de uma música na Rússia. Maidan significa alguma coisa como "campo", e representa um desafia muito difícil que deve ser ultrapassado. (**) Nome feminino russo. Significa "esperança". Nome diminutivo - Nadia. (***) Olha o comentário dois. (****) Poeta russo. (*****) RTFM mitos gregos. Teseu e o Minotauro. (******) Escritor russo. (*******) Personagem de conto de crianças que criou um boneco de madeira (versão soviética de Pinóquio). (********) Escritor americano. Entre outros livros, autor das Aventuras de Tom Sawyer.(c) TraduÃÖo por Eugeni Dodonov HomePage - http://eugeni.dodonov.net
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